"Amor e Dedinhos
de Pé"
Por Vasco T. Menezes
Apostas,
noitadas e farra. São essas as ocupações
a tempo e inteiro de Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida).
Jovem de boas famílias, é na alta sociedade
macaense do início do século XX que se movimenta,
sem grandes preocupações e ainda menos responsabilidades.
Famoso pelos dotes de conquistador, os seus talentos para
o jogo (que, para além da perícia na sueca,
se estendem às apostas com lutas de grilos) não
passam igualmente despercebidos.
Para este “bon vivant” profissional,
o trabalho não parece ser opção. É,
aliás, uma palavra que raramente lhe sai da boca,
a não ser quando se torna necessário convencer
a sua abastada tia (o tio, que lhe chama irresponsável,
é que já não vai na conversa) a “emprestar-lhe”
dinheiro, a pretexto de um qualquer “negócio
da china” e sob promessas constantes de “regeneração”.
Líder de um grupo de foliões, vive para aceitar
os desafios que aqueles lhe propõem. E uma dessas
“demandas” coloca-o frente a frente com Victorina
Vidal (Ana Torrent), neta de um médico espanhol especializado
em doenças venéreas e a rapariga menos disputada
de Macau.
A brincadeira dá para o torto
e termina com Francisco, no decorrer de um baile de celebração
do ano novo chinês, a brindar Victorina com mimos
como “vesga”, “mastronça”
ou “Varapau de osso”, a alcunha que a tornou
famosa por terras do Sul da China. Meses mais tarde, quando
os seus caminhos voltam a cruzar-se, as posições
inverteram-se radicalmente. Francisco levou as tropelias
longe demais e passou a ser “persona non grata”
entre as classes privilegiadas de Macau. O seu pecado? Ter
humilhado publicamente uma família poderosa. O castigo?
Três-em-um: um espancamento, a condenação
ao ostracismo social e uma insólita doença,
parecida com a lepra, que lhe afecta os pés, cheios
de feridas e a cheirar bastante mal…
Quanto a Victorina, deixou de ser a
mulher insegura de outrora, convencida de que o futuro só
poderia ser idêntico ao das tias, duas solteironas
frustradas e infelizes, para adquirir finalmente confiança
na sua feminilidade. O responsável? O abastado padrinho,
Gonçalo Botelho (Jean-Pierre Cassel), que a ajuda
a ganhar amor-próprio e a nomeia sua procuradora
(com direito a usufruir das suas luxuosas moradias) antes
de partir para o Japão. E é assim que, uma
noite, por obra do acaso (ou terá sido o destino),
a jovem enfermeira se depara novamente com o menino Frontaria,
agora um farrapo humano meio morto. E, para surpresa (e
descontentamento) geral, resolve auxiliá-lo…
É do confronto entre estas duas
figuras que vive “Amor e Dedinhos de Pé”
(1991), de Luís Filipe Rocha. Adaptação
do romance homónimo do escritor macaense Henrique
de Senna Fernandes, o filme marcou o regresso ao cinema
do realizador português, após um período
de inactividade que coincidiu com uma passagem de seis anos
por Macau. Para trás ficava o que poderá ser
apelidado de primeira fase da carreira do cineasta, marcada
por obras de forte conteúdo político e arreigada
consciência social, de que “Cerromaior”
(1981) figura como o exemplo mais conhecido.
Corte e costura
Com “Amor e Dedinhos de Pé”,
é notório o desejo de Rocha em pôr em
prática um modelo cuidado de cinema “industrial”
— prosseguido depois em filmes como “Camarate”
(2001) ou “A Passagem da Noite” (2003) —,
tecnicamente competente e ao serviço de uma narrativa
bem estruturada. Todos os sinais apontam, de resto, nessa
direcção: a aposta em valores fortes de produção
(com destaque para a fotografia de Eduardo Serra); a relativa
discrição do trabalho de câmara (toda
a primazia é dada à ilustração
escorreita de uma história com cabeça, tronco
e membros); e a própria escolha do modelo de “filme
de época”, ideal para a exposição
de “qualidade técnica”.
E se a preocupação em
atrair o máximo de público possível
de uma forma inteligente, sem aplicar fórmulas convencionais
ou sabotar a criatividade artística — basta
observar como a reconstituição histórica
de Macau em 1900 se opera com os atributos da emoção
e da atmosfera —, já de si constituiria um
mérito considerável, o filme apresenta ainda
outros trunfos. Desde logo, o modo como se esquiva a um
sublinhar redundante do “exotismo” do cenário,
ao não se desdobrar por múltiplos subenredos,
deixando antes que a crónica de costumes se concretize
através da história central, que junta os
destinos de Francisco e Victorina.
Ao concentrar a acção
nesse par, o filme de Rocha assume-se como uma adaptação
livre da matriz original. Ou seja, mais do que o documento
da passagem dos portugueses pelo Oriente, ao realizador
(e ao seu parceiro na feitura do argumento, o brasileiro
Izaías Almada, com quem voltaria a colaborar no seu
projecto seguinte, “Sinais de Fogo”, adaptação
de Jorge de Sena) interessou acima de tudo retirar do livro
de Senna Fernandes a hipótese de amor que nasce entre
dois excluídos, desprezados pela sociedade (ela por
não corresponder aos padrões habituais de
beleza, ele por via dos erros cometidos no passado). Deste
modo, poder-se-ia até dizer que o núcleo de
“Amor e Dedinhos de Pé” está todo
no título que recebeu em França: “Macau,
Desprezo e Paixão”. É disso, no fundo,
que se fala aqui.
Nessa operação de
“corte e costura” em relação ao
romance, as últimas imagens resultam sintomáticas:
o filme elide o “final feliz” (“Era demasiada
água com açúcar”, disse, na altura
da estreia, Izaías Almada) proposto pelo escritor,
em favor de algo em aberto, a apontar para o término
da insólita relação entre “Varapau
de osso” e “Chico pé fede” (o nome
pelo qual o “excomungado” Frontaria passa a
ser conhecido após contrair a doença que quase
o mata). Uma opção executada com elegância,
a palavra-chave em “Amor e Dedinhos de Pé”,
bem à vista quer no retrato da hipocrisia moral da
época, quer na metamorfose de registos: comédia,
drama e, por fim, história de amor.