"Velvet Goldmine"
Por Vasco T. Menezes
Um
disco voador desce até à Terra. A missão
dos visitantes de outro planeta? Deixar, como legado de
“diferença”, um broche de esmeralda (por
isso, podemos apenas imaginar que sejam “homenzinhos
verdes”, pois nunca os chegamos a ver) à porta
de uma casa em Dublin, no ano de 1854. O destinatário?
Nada mais, nada menos do que Oscar Wilde, que ali acaba
de nascer. Para pouco tempo depois, ainda em criança,
anunciar numa sala de aula: “Quero ser um ídolo
‘pop’...”
E assim começa “Velvet
Goldmine” (1998). O dandismo de Wilde como ponto de
partida para o movimento musical a que se deu o nome de
“glam rock”? É essa a proposta do filme
de Todd Haynes, que, logo a seguir, avança mais de
um século, até ao início dos 70, em
Inglaterra, momento da eclosão de um turbilhão
que uniu música, moda e maquilhagem, apostando no
espalhafato e na confusão sexual como formas de antídoto
contra a “revolução do amor” da
década anterior.
É no auge da sua popularidade
que, em 1974, a superestrela do movimento, Brian Slade (Jonathan
Rhys Meyers), resolve encenar o seu próprio assassinato
durante um concerto. O objectivo é simples: “matar”
o seu duplo, Maxwell Demon (um extraterrestre vindo do espaço
para ser o Messias do “rock”), personagem que
o ameaçava devorar. Mas quando a “brincadeira”
é revelada, a carreira de Slade fica com os dias
contados. Abandonado pelos fãs, desaparece sem deixar
rasto. Até que, no décimo aniversário
desse golpe publicitário, o jornalista Arthur Stuart
(Christian Bale) se vê encarregue de descobrir o que
aconteceu ao ídolo caído. E, à medida
que investiga o que é feito dele, é obrigado
a enfrentar as suas próprias memórias, recordando
uma vida que ficara esquecida nas brumas do passado.
É através das recordações
colhidas ao entrevistar os que estiveram ao lado do cantor,
incluindo a ex-mulher americana, Mandy (Toni Colette), que
Stuart, fã do andrógino Slade durante a adolescência,
vai regressar a um tempo que julgava esquecido. E com ele
o espectador, transportado para uma época em que
todas as liberdades e flutuações de identidade
pareciam possíveis. Quando da exibição
de “Velvet Goldime” no Festival de Cannes de
1998, Haynes foi claro: “O que me interessa nos anos
70 é o facto de, depois de uma década muito
politizada, os anos 60, as fronteiras terem desaparecido
momentaneamente. Enquanto nos anos 80 toda a gente se meteu
dentro de guetos de identidade, nos anos 70 ficaram diluídas
as fronteiras entre o homem e a mulher, entre o ‘gay’
e o hetero.”
Euforia e perda
Ou seja, a mistura de música,
moda e maquilhagem, os veludos, as lantejoulas, os tacões,
as plumas, as pestanas falsas e tudo o resto que constituiu
a iconografia exibicionista da era “glam” não
seriam mais do que o não conformismo levado ao extremo,
marcas de uma celebração efusiva da liberdade
individual. Não durou muito, mas percebe-se o fascínio
de Haynes, que já foi uma das figuras de proa do
“New Queer Cinema” americano (embora hoje esteja
para além de quaisquer rótulos), merecendo
ser simplesmente considerado um dos mais originais e marcantes
cineastas contemporâneos.
Numa carreira construída à
margem da indústria de Hollywood (é dos poucos
casos a quem o epíteto de “independente”
assenta que nem uma luva), o realizador desde sempre assumiu
a pele de iconoclasta e transgressor. Obras tão arrojadas
como “Superstar: The Karen Carpenter Story”
(1987) — filme em que substituía os actores
por bonecas “barbie”, directamente explicitado
numa sequência de “Velvet Goldmine” —
ou “Veneno” (1991), controverso trio de histórias
inspirado em Jean Genet, são exemplos perfeitos.
Por isso, dificilmente se poderia esperar dele a mera reconstituição
histórica de uma determinada época. E, de
facto, em “Velvet Goldmine”, Haynes não
recria, antes reimagina o “glam rock” e os anos
70.
Por isso mesmo, e como o acto
de recordar surge aqui como essencial (daí a complexa
estrutura de múltiplos “flashbacks”,
glosando o “Citizen Kane” de Orson Welles),
o filme propõe uma espécie de sonho dos anos
70, colecção de memórias ligeiramente
distorcidas que acumula e cruza imagens de vários
tempos. Assim, se Slade e a sua obsessão e inspiração,
o “animal de palco” Curt Wild (Ewan McGregor),
convocam explicitamente David Bowie e Iggy Pop, a verdade
é que também se confundem com muitas outras
figuras, de épocas vizinhas ou não, como Brian
Ferry e Brian Eno, ou Jim Morrison e Kurt Cobain. Fotografias
desfocadas, portanto, o que faz todo o sentido quando o
“filme de época” é engolido pelo
delírio onírico e, por entre fragmentos de
ficção científica, se transforma em
qualquer coisa como um conto de fadas malcomportado. Mas
a singularidade vibrante de “Velvet Goldmine”
não pode ser reconduzida apenas à sua radical
recusa em submeter-se a fórmulas pré-estabelecidas.
É que, por trás da subversão de códigos
e géneros e da euforia visual deste caleidoscópio
cinematográfico, palpita o coração
de uma obra política. No filme, o futuro —
os anos 80 de onde olha Stuart — é pintado
com os tons cinzentos de um pesadelo orwelliano (alegoria
da América corporativa e reaccionária de Reagan?),
onde da hipótese de revolução “glam”
restam apenas cinzas. Fazendo com que toda a explosão
de sons, cores e movimentos seja atravessada por uma imensa
perda.