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"Terra de Ninguém"
Por Alexandra Prado Coelho

O circo da guerra está montado. Tem um cenário — uma trincheira de guerra clássica, “à antiga” — e todas as personagens essenciais para um conflito moderno. Dois inimigos, um sérvio e um bósnio, “capacetes azuis” da ONU, um general cínico, um sargento bem intencionado, uma jornalista disposta a tudo, gente que só se compreende num inglês ultrabásico. O azar quis que os dois soldados inimigos acabassem frente a frente na mesma trincheira, na “terra de ninguém” que dá nome ao filme. Uma trincheira entalada entre duas trincheiras inimigas, na guerra da Bósnia, em 1993.

O filme do bósnio Danis Tanovic, vencedor de vários prémios, entre os quais o Óscar para o melhor filme estrangeiro de 2001, e um prémio para o Melhor Argumento no Festival de Cannes, é uma tragédia, mas é também uma sátira. Apanhados na absurda situação de terem ficado presos na mesma trincheira, o sérvio Nino e o bósnio Ciki reproduzem os argumentos mais simplistas da guerra que está a destruir o seu país.

“Foram vocês que a começaram”, “não, foram vocês”. A discussão repete-se, mas o vencedor é sempre o mesmo: aquele que tem a arma na mão. É essa lógica, também simplista, da guerra que se reproduz naquela trincheira. Quem manda, quem dá as ordens, é sempre aquele que, no momento, tem a arma na mão. E isso pode mudar num segundo, com uma pequena distracção.

Mas, na “terra de ninguém”, há um terceiro homem. Está lá desde o princípio, embora inicialmente pensemos que está morto. É outro bósnio, um dos companheiros de Ciki, atingido no ataque com que o filme começa. Esse homem, Cera, está na situação mais absurda de todas: o seu corpo (quando se pensava que estaria morto) foi colocado pelos sérvios em cima de uma mina e ele não se pode mexer porque a mina rebentará.

O circo está montado. É preciso salvar os homens. Os inimigos, de um lado e do outro, concordam numa coisa: tem que se chamar a força da ONU. Mas esta está limitada na sua missão, em que não pode usar a força nem envolver-se em confrontos. Perante a impotência — e o cinismo levado ao limite do general Soft — é a televisão que acaba por se impor e obrigar os “capacetes azuis” (ou “schrumpfs”, como são chamados pelos soldados) a agir. Ou a fingir que o fazem.

As personagens de Tanovic oscilam entre o ridículo e a impotência. A vontade de agir do sargento Marchand — “não fazer nada já é tomar partido”, diz para justificar a impossibilidade de ser neutro — acaba por se revelar também inútil. Os inimigos que não morreram dentro da trincheira acabam por se matar cá fora. E Cera, em cima da bomba por explodir, não é mais do que um cadáver adiado.

O humor em vez do sangue

O objectivo principal de Tanovic não é apontar culpados. Como o próprio explicou numa entrevista: “Hoje ninguém precisa de explicar por que é que os judeus foram vítimas na II Guerra Mundial. Então por que é que eu hei-de ter que explicar, uma e outra vez, que os bósnios foram vítimas? Toda a gente que queria saber o que se passou na Bósnia sabia que os bósnios foram vítimas. Por isso eu não quis insistir nessa ideia.”

O realizador, que no início da guerra foi para a linha da frente e passou dois anos a filmar junto do Exército bósnio, não apresenta a personagem do sérvio como o “mau” da história. Se há acusações, elas são muito claramente dirigidas à comunidade internacional e às forças da ONU. Apesar disso — e de se tratar de uma coprodução entre a França, a Bélgica, a Itália e a Eslovénia — “Terra de Ninguém” é indiscutivelmente um filme bósnio (embora a única cedência que Tanovic faz a dar alguma explicação é através de imagens de arquivo que mostram Slobodan Milosevic a defender a Grande Sérvia).

“Terra de Ninguém” é, no entanto, mais um filme sobre a guerra do que um filme sobre uma guerra específica. E aposta mais no humor (mesmo ligado à tragédia) do que no sangue. “Digo muitas vezes que este é um filme sério com um bom sentido de humor”, afirma Tanovic. “Não queria fazer um filme que fosse muito duro de se ver e que ninguém quer ir ver. Queria fazer um filme que fosse duro, mas que as pessoas quisessem ver.”

O que fica no fim de um incidente absurdo como este, em que, afinal, os que se queriam salvar morrem quase voluntariamente, porque o ódio é mais forte? Fica, provavelmente, uma história de televisão, contada em directo, que prendeu os espectadores ao ecrã durante algumas horas. Fica a glória fugaz da jornalista, que, entre a vontade de ser protagonista e algum desejo de ajudar, acaba por deixar que a verdadeira história lhe passe ao lado.

Pouco importa que Cera fique esquecido em cima da sua bomba. Para os espectadores, num país distante, tudo acabou bem. No teatro montado para as câmaras, a ONU fez o seu dever (ou mesmo mais do que o seu dever) e as consciências ficam tranquilas. Ceca ia morrer de qualquer forma. A informação não era relevante. A guerra pode continuar.