"Vidas Simples"
Por Vasco T. Menezes
Uma
vida inteira sempre a fugir às responsabilidades.
Tem sido assim a existência de Sully (Paul Newman).
As razões podem ser várias — rebeldia,
imaturidade ou simples casmurrice —, mas o resultado
apenas um: aos 60 anos, não tem muito para mostrar.
Sem casa própria — é inquilino de Miss
Beryl (Jessica Tandy), uma viúva que foi sua professora
no oitavo ano —, nem emprego fixo, vive de biscates
ocasionais na área da construção civil.
E o futuro não se apresenta mais
risonho: uma lesão no joelho, fruto de um acidente
de trabalho, deixouo debilitado, preenchendo por isso a
maior parte do tempo embrenhado num conflito de vontades
com o seu empregador esporádico (Bruce Willis) ou
a ensaiar “flirts” inconsequentes com a mulher
deste (Melanie Griffith). Em tempos, Sully abandonou a mulher
e o filho, deixando para trás um casamento que “foi
um erro” e uma criança com apenas um mês
de idade. Não partiu para muito longe (“fiquei
apenas a uns quarteirões de distância”,
diz ele), mas foi como se tivesse viajado até à
Lua, tendo em conta a participação pouco menos
que inexistente nas vidas da família que decidiu
deixar. Até ao dia em que se cruza com Peter (Dylan
Walsh), o filho que raramente vê, e descobre que tem
um neto cuja existência desconhecia…
É este homem, que nunca quis
ser pai e decide tentar aprender a ser avô, que está
no centro de “Vidas Simples” (1994). Um filme
que, pelo que ficou dito atrás, facilmente se percebe
ser dominado pela presença enorme de um actor, Paul
Newman. Ícone do cinema americano, o “monstro
sagrado” dos olhos azuis é um dos últimos
grandes representantes da “época de ouro”
de Hollywood e uma das estrelas carismáticas (é
o tal “star quality”, hoje tão fugidio)
que revolucionaram a arte de representar. Simplificando,
Newman foi, a par de Marlon Brando, Montgomery Clift ou
James Dean, um dos filhos do “Método”,
a escola de representação que nos anos 50
alterou por completo a abordagem à relação
entre câmara, actor e papel. Foi dentro desse estilo
que Newman veio a coleccionar uma série de interpretações
memoráveis, “vivendo” as suas personagens
de forma fascinante em obras como “Gata em Telhado
de Zinco Quente” (1958), “A Vida é um
Jogo” (1961), “Corações na Penumbra”
(1962), “O Mais Selvagem Entre Mil” (1963) ou
“O Presidiário” (1967). Nada ficando
a dever a essas míticas criações, o
seu Sully de “Vidas Simples” torna-se ainda
mais espantoso se atendermos ao modo como o actor habita
a personagem, num registo de minimalismo subtil (quase se
poderia dizer que se limita a “estar” em frente
à câmara, impondo a sua presença magnética
em vez de representar) onde não parece haver qualquer
expressão da “interioridade” que o “Método”
sempre favoreceu.
Melancolia e ternura
Sendo Newman o núcleo de “Vidas Simples”
— não seria até descabido falar numa
“carta de amor” do realizador e argumentista,
Robert Benton, ao actor, presente em praticamente todas
as cenas —, nem por isso se poderá pensar no
filme como um objecto dirigido em exclusivo para o seu protagonista.
E isto porque a generosidade de Benton é imensa:
o veterano cineasta ofereceu uma personagem inesquecível
a Newman, mas teve a preocupação de a rodear
de outras figuras de corpo inteiro, possuidoras de voz e
densidade, e não meros adereços.
Como consequência, foi recompensado
(e, por inerência, o espectador também) com
uma série de desempenhos notáveis, de Tandy
(que aqui se despediu do cinema) a Willis ou Griffith (duas
vedetas a demonstrar algo nem sempre permitido: uma dimensão
humana), passando por intérpretes menos “mediáticos”
como Pruitt Taylor Vince (o melhor amigo, não muito
perspicaz, de Sully) ou Gene Saks (o delicioso advogado
perneta, que, apesar de inúmeras tentativas, não
consegue que o seu cliente, Sully, vença uma acção
de indemnização laboral).
Exemplos de uma vulnerabilidade tocante,
o olhar lançado sobre eles é de calorosa empatia,
com Benton a encenar com extrema sensibilidade as relações
que se estabelecem no seio de uma cidadezinha em perda,
a caminho do ocaso demográfico e económico.
Profundamente melancólico, pelo filme passa ao mesmo
tempo uma sensação de perfeita harmonia: tudo
está no sítio certo e em doses exactas (admirável
o “jogo” entre momentos de maior emoção
dramática e episódios humorísticos),
como numa peça de artesanato trabalhada até
ao mais ínfimo pormenor, com delicadeza de filigrana
e todo o tempo do mundo.
Intimista e depurado, “Vidas
Simples” constrói-se em surdina, assumindo
com orgulho o seu falso tom “menor” (de resto,
as produções em “pequena escala”
têm sido, desde a sua primeira obra, o “western”
“Bad Company”, em 1972, o território
de eleição de Benton, como aliás o
comprova a colaboração seguinte com Newman,
“Twilight”, de 1997). Num filme que demonstra
tanta ternura pelas suas personagens, a última imagem
não poderia ser mais eloquente (e, já agora,
belíssima): Sully adormecido no sofá, em paz
consigo mesmo. Confrontados os demónios interiores
e expiados os pecados passados, a vida pode finalmente (re)começar.