SERIE Y I    SERIE Y II   SERIE Y III ARTIGOS    FOTOS

"Um Homem Chora"
Por SARA GOMES

“Um Homem Chora” (“The Man Who Cried”, 2000) é um filme sobre personagens perdidas entre o passado e o futuro, entre o que foram e o que sonham ser. A realizadora inglesa Sally Potter, que também assina o argumento, diz que a história nasceu da “imagem de duas mulheres num pequeno barco a dirigirem-se para um barco maior; uma delas olha em frente para ver o que a espera e a outra para trás para ver o que deixa”.

Suzie, uma menina russa de sete anos que fica órfã e “renasce” em Londres, onde ganha um novo nome, é a personagem que dá vida a essas “duas mulheres”. O filme leva-nos ao ano de 1927, na Rússia. A época é marcada pelas dificuldades de sobrevivência dos judeus num mundo que começa a ser assombrado pelo nazismo. A América surge-nos aqui como a Terra Prometida, o lugar onde todos os sonhos se podem concretizar. Uma esperança que leva milhares de judeus a abandonar o seu país e as suas famílias, na procura de riqueza. É esse o caso do pai de Suzie, interpretado por Oleg Yankovsky.

Mas eis que a Alemanha, sob o regime de Hitler, começa a invadir os países vizinhos e a ameaçar as comunidades judaicas. Numa noite fatídica, em que as casas dos judeus são incendiadas, a pequena Suzie acaba por se perder da família e entra num barco que tem como destino Londres, Inglaterra. Para trás fica o sonho de reencontrar o pai, cujo retrato guarda religiosamente, como quem guarda a sua identidade. Este será, aliás, o seu único elo a um passado que se apresentará cada vez mais distante e difuso. Mas que não esquece.

Uma "ópera silenciosa"

Há um mar imenso envolto em chamas. A água agita-se e uma rapariga de cabelos negros debate-se à superfície. A respiração é profunda, aflita, quase sufocada. Ao longe, distingue-se o som de uma música. Esta é a primeira cena de “Um Homem Chora”. O filme esteve em competição no Festival de Cinema de Veneza e tem uma sublime banda sonora assinada pelo compositor argentino Osvaldo Golijov. Aqui, a música e o silêncio do olhar de cada uma das personagens dispensam, muitas vezes, as palavras.

Este era, aliás, um dos princípios de Sally Potter, que antes já tinha realizado filmes como “Orlando” (1992) ou “A Lição de Tango” (1997). Para a cineasta, “Um Homem Chora” fala-nos de “saudade”, de “um estado de espírito que é mais forte do que o desejo”. Uma espécie de “ânsia de amor, de descobrir o significado das coisas, do que se perde e não é palpável, nem dizível”. Por isso, a banda sonora se revela tão importante: “Tinha de ser uma música que ultrapassasse as barreiras linguísticas, que nos pusesse em contacto com o mundo.” Ou seja, que permitisse um reconhecimento mútuo e cruzasse as várias histórias, os vários tempos, as várias personagens deste filme. É o que acontece com Suzie, para quem a música funciona como um elo
de ligação ao passado e uma forma de expressar o que sente. Da mesma maneira, a paixão entre Suzie e o cigano César (Johnny Depp) também surge, neste filme, associada ao silêncio do olhar e à música que dá impulso ao gesto e ao erotismo. Numa entrevista, Johnny Depp descreve o romance como “semelhante ao de Romeu e Julieta”.

A perseguição aos ciganos

Perdida em memórias que não consegue identificar, é em Londres que Suzie cresce e se transforma numa mulher enigmática (Christina Ricci), cujo único objectivo é juntar dinheiro e viajar para a América à procura do pai. O seu talento para cantar (e as suas belas pernas) acabarão, no entanto, por levá-la para um “cabaret” em Paris, onde trava amizade com Lola, uma bailarina russa (fabulosa Cate Blanchett), que a convidará a participar numa ópera. Aqui, Suzie apaixona-se pelo cigano César e enfrenta a ira de Dante Dominio (John Turturro), cantor de ópera sem escrúpulos, para quem os ciganos não passam de “animais porcos”. Um confronto que acabará por se revelar fatídico para a jovem, quando a Alemanha, sob o regime de Hitler, começa a invadir a Europa e Dante descobre que ela é judia.

“Queria mostrar como numa época de dor e ódio houve quem se servisse disso para concretizar os seus desejos mesquinhos”, explica Sally Potter. Mas este não era o único objectivo da realizadora. Após uma longa pesquisa sobre a Segunda Guerra Mundial, Sally Potter também queria revelar uma das facetas menos conhecidas deste período negro da história — além das comunidades judaicas, também as ciganas foram perseguidas e assassinadas pelos nazis. “Parece que há uma amnésia geral no que diz respeito à discriminação deste povo”, disse numa entrevista quando o filme foi lançado. Mais tarde acrescentou: “É como se a comunidade cigana continuasse a ser marginalizada.”

E é assim que um filme que, à partida, poderia ser apenas mais uma história de intriga, amor e traição se transforma num retrato curioso e comovente de uma época. Mas sem juízos morais. Os diálogos são curtos, essenciais. O silêncio de Suzie (personagem quase perfeita, mas estranhamente humana) é como um espelho
— apenas nos devolve imagens de nós próprios.