Kika
Violações de privacidade
Por VASCO T. MENEZES
Comédia neurótica, sátira social, melodrama familiar
e "thriller" negro. Tudo isto é "Kika", a despedida, delirante
e amargurada, de Pedro Almodóvar às provocações "kitsch"
da primeira fase da sua obra.
Uma maquilhadora e um fotógrafo. Ela, Kika (Verónica
Forqué), fala pelos cotovelos, ele, Ramón
(Alex Casanovas), quase não abre a boca. Conheceram-se
há três anos, enquanto Kika se preparava para
tornar mais “vivo” o rosto de Ramón,
supostamente morto, mas apenas sob o efeito de um dos seus
recorrentes e prolongados ataques catalépticos. Foi
amor à primeira vista e, desfeito o equívoco
(e as hipóteses de necrofilia), os dois formam um
casal.
No entanto, a frieza distante de Ramón, atormentado
pelo aparente suicídio da mãe, torna-se cada
vez mais insuportável. Que pode então uma
rapariga fazer senão correr para junto do padrasto
do namorado? Nicholas Pierce (Peter Coyote), jornalista,
escritor e boémio americano, torna-se assim o último
vértice de um singular triângulo amoroso que
— a partir do momento em que Nicholas, sem dinheiro
e desempregado, se instala no estúdio do enteado,
a apenas um andar de distância do apartamento de Ramón
e Kika — coexiste no mesmo espaço.
Vidas cruzadas, que se complicam ainda mais pela presença
de outras figuras insólitas. Entre elas, avulta Andrea
Caracortada (Victoria Abril), que trocou o emprego de psicóloga
pelo de apresentadora de um programa de TV sensacionalista,
percorrendo a cidade de moto em busca de casos sórdidos,
munida de uma câmara instalada no capacete e com dois
focos de luz a saírem do “boustier”.
Mas há ainda espaço para mais loucura, cortesia
de Juana, a empregada lésbica de Kika, apaixonada
pela patroa, e do seu irmão, Pablo, um tarado sexual,
com deficiências mentais, tornado estrela “porno”
fugida da prisão…
É este o labirinto de personagens que compõe
o tecido humano de “Kika” (1993), a décima
longa-metragem de Pedro Almodóvar. Um filme que surgiu
numa época complicada para o realizador espanhol,
abraços com as contingências da fama (nomeadamente
a invasão da esfera íntima) e as acusações
de cineasta em estagnação criativa, preso
a um exibicionismo gratuito, fascinado pelo seu próprio
mito de “provocador”. Por isso mesmo, não
espanta que, tendo em conta tudo o que surgiu desde então
- a série de melodramas sérios iniciada em
“A Flor do Meu Desejo” (1995), reflexo de um
progressivo “amadurecimento” -, “Kika”
faça figura de obra de transição, momento
decisivo na carreira de Almodóvar, “enfant
térrible” à procura da serenidade dos
“mestres”.
Quando olhamos para o filme, podemos falar então
numa carta de despedida. De Almodóvar em relação
à primeira fase da sua obra, construída sob
o signo do choque e da provocação, as armas
próprias de quem conquistou por direito próprio
o posto de herói da “movida”, a revolução
da contracultura que, no dealbar da Espanha pós-franquista,
surgiu como reacção ao fim da ditadura. Essa
sensação de “última vez”
está, de resto, bem patente na acumulação
de características e marcas típicas do cinema
do realizador.
Desde logo, o pendor marcadamente “kitsch”,
visível na decoração - de um barroquismo
exacerbado - da casa de Kika e Ramón ou na colecção
de vestidos espampanantes (desenhados por Jean-Paul Gaultier)
da inacreditável Caracortada. A seguir, o humor absurdo,
a resvalar para o escabroso, também não deixa
de se fazer sentir, com destaque para a tão discutida
(e divertida) cena de violação, em que a vítima,
Kika, se comporta de forma “optimista”, tentando
negociar com o agressor, Pablo, dizendo-lhe que um dia todos
os seus problemas se resolverão...
De “ousadia” e “irreverência”,
está visto, estamos bem servidos, o mesmo se podendo
dizer quanto ao catálogo de motivos almodovarianos
que por aqui também desfilam: disfunções
familiares, sexo e morte, mulheres faladoras com “coração
de ouro”, homens introvertidos e torturados. Como
motor de “Kika”, sobressai ainda o voyeurismo.
Todo o filme corre segundo uma lógica de obsessão
pela imagem, desdobrando-se em múltiplas violações
da privacidade, desde o buraco de fechadura com que se inicia
o genérico à descoberta da chave para a “sub-intriga”
policial (por meio de um vídeo filmado por um dos
mirones que perscrutam o quotidiano do trio de protagonistas),
passando pela sequência da violação
(testemunhada por Juana, um par de polícias e ainda
Ramón, “voyeur” a tempo inteiro). O zénite,
claro, é atingido com a personagem de Caracortada,
insólita e predadora “câmara humana”,
que violenta intimidades a troco de notícias sensacionalistas.
E se este “best of” do “estilo Almodóvar”
parece de facto apontar para o anúncio de fim de
um ciclo, essa ideia sai ainda mais reforçada pelo
que “Kika” traz de novo ao universo do realizador:
ao invés da voragem efusiva, em jeito de celebração
da liberdade, o delírio deixa entrever amargura e
gravidade. Por isso, através de sucessivos golpes
de rins, o filme vai avançando para terrenos progressivamente
mais sombrios: comédia neurótica, sátira
ao fascínio dos “media” pela violência,
melodrama familiar e “thriller” negro (é
neste “cocktail” de registos que se nota o peso
de uma influência assumida pelo realizador: “Selvagem
e Perigosa”, de Jonathan Demme). E também por
isso, a explosão de cores “pop” esconde
agora o cinzentismo do desencanto, com Almodóvar
a oferecer-nos uma galeria de seres desesperados, prisioneiros
das suas fraquezas e desejos, encerrados num isolamento
que impossibilita a comunicação.