Bowling for Columbine
A cultura do medo
Por VASCO T. MENEZES
Um realizador aponta a câmara ao seu país
e expõe a psicose colectiva de uma nação.
Antes de “Fahrenheit 9/11” houve “Bowling
for Columbine”, a América e as armas segundo
o “guerrilheiro” Michael Moore.
Revólveres, metralhadoras Uzi, carabinas de caça,
espingardas de assalto militares… Nos Estados Unidos,
todo e qualquer tipo de armas pode ser encontrado nas mãos
de particulares. De resto, é fácil adquirir
armas na América: na maior parte dos casos, é
apenas necessário facultar uma forma de identificação
e não possuir cadastro criminal, sendo que em certas
situações– como as feiras de armas e
as encomendas por correio – nem isso chega a ser preciso.
Perante estas facilidades, não admira que existam
aproximadamente 80 milhões de armas de fogo espalhadas
pela população americana. A estes números,
já de si preocupantes, deverão juntar-se outros,
ainda mais assustadores: nos EUA, as armas são responsáveis
por mais de onze mil mortes por ano, um valor que ultrapassa
em muito o do conjunto de todos os outros países
industrializados do mundo.
Factos mais do que suficientes para justificar uma análise
aprofundada de um tema delicado. Foi isso que, através
do documentário “Bowling for Columbine”
(2002), Michael Moore– o homem do momento, graças
à polémica que tem rodeado a sua última
obra, “Fahrenheit 9/11, estreada hoje em Portugal
– se propôs fazer. Pelo
título do filme, poderíamos pensar que ele
se centraria em exclusivo nos acontecimentos de 20 de Abril
de 1999, dia em que, na pequena vila de Littleton, no Colorado,
dois adolescentes, Eric Harris e Dylan Klebold, assassinaram
a tiro 13 pessoas, entre colegas e professores, suicidando-se
em seguida.
No entanto, o realizador parte dessa tragédia para
uma visão mais abrangente, enquadrando-a como reflexo
de um flagelo do tamanho de um país: a obsessão
dos americanos pelas armas e o consequente número
de mortes em que esta se traduz. Explicações?
Ao longo dos anos, têm-se multiplicado: cultura popular
violenta (dos filmes aos jogos de computador, passando pela
música e TV), problemas e desigualdades socioeconómicas,
drogas, pais ausentes, armas de brincar…
Um rol de argumentos pronto a ser descartado (e ridicularizado)
por Moore, que prefere também não enveredar
pela via mais fácil de ver na abundância de
armas e na facilidade com que podem ser adquiridas as únicas
causas do problema. Não, para o cineasta a questão
é bastante mais complexa, remontando antes à
própria mentalidade americana, à natureza
intrínseca da nação. E então
é assim: os EUA foram fundados no medo, responsável
por uma escalada de violência que não tem parado
desde que os peregrinos exterminaram os índios.
Aliás, um dos momentos mais divertidos (e reveladores)
de “Bowling for Columbine” é sintomático
dessa mesma conclusão. Moore atravessa a fronteira
e viaja pelo pacato Canadá, onde descobre que apesar
de existirem tantas armas de fogo “per capita”
como nos EUA, a taxa de mortes por esse motivo é
muito inferior. Porquê? Ao que parece, os habitantes
do país vizinho (que até nem trancam as portas
das casas…) não vivem acossados pela paranóia
da segurança que domina os americanos, inseridos
numa cultura do medo que se propaga como um vírus.
O “show” da
denúncia
Uma tese já de si suficiente para causar controvérsia
q.b., mas que se torna ainda mais “incendiária”
pelo modo como é exposta: Moore manda às urtigas
o distanciamento próprio da tradição
documental e posiciona-se no centro do seu filme, protagonista
de um inquérito corrosivo e mordaz (o sarcasmo está
omnipresente, como desde logo o comprova a voz “off”
inicial, anunciando, em tom de fábula: “Era
uma manhã como outra qualquer na América.
O Presidente bombardeou outro país cujo nome não
sabíamos pronunciar…).
É esse o estilo – estabelecido no “opus
1”, “Roger & Me” (1989), e continuado
desde então, entre cinema, TV e livros – do
realizador: “guerrilheiro”, “terrorista”,
montando, com falinhas mansas, o cerco aos entrevistados,
para depois os apanhar desprevenidos, qual lobo em pele
de cordeiro. A entrevista a Charlton Heston, presidente
da National Rifle Association (NRA), o influente “lobby”
pró-armas, é eloquente: a pretexto de uma
conversa sobre a questão das armas e aproveitando
o facto de ser membro da NRA, Moore consegue entrar na mansão
do actor em Beverly Hills e exigir a Heston um pedido de
desculpas por ter presidido a comícios da associação
em locais assolados pouco tempo antes por episódios
como os de Columbine.
Uma opção que dá azo a uma série
de sequências de um humor absurdo saborosíssimo.
Moore a abrir uma conta num banco do Michigan só
para poder demonstrar como é fácil adquirir
o brinde oferecido, uma espingarda, ou a exortar um dos
produtores de “Cops” a criar um “reality
show” que, em vez de perseguir as minorias étnicas,
volte a atenção para os crimes empresariais
são exemplos perfeitos de uma lógica: a da
denúncia como “show”. Num filme tão
cáustico para com os EUA, o realizador rege-se pelas
regras, muito americanas, do espectáculo– o
objectivo de divertir e entreter os espectadores é
tão importante como o de passar uma determinada mensagem;
por isso, a um momento mais incómodo ou pungente
segue-se o alívio da boa disposição
(muitas vezes sem que a linha que separa ambos seja sequer
visível) – e é essa aparente contradição
que faz de “Bowling for Columbine” um objecto
tão fascinante.
Aliada, claro, à acumulação e manipulação
exímias dos mais variados materiais arrancados ao
imaginário americano (filmes, TV…) e à
sua iconografia “pop”. Há uma sequência
que, de forma admirável, sintetiza tudo: imagens
de arquivo traçam uma cronologia de golpes e intervenções
dos EUA no estrangeiro, ao longo dos últimos 50 anos
(é o tal medo, que tem na atitude belicista do governo
o expoente máximo), ao som do “What a Wonderful
World” de Louis Armstrong…