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"Sapatos Pretos", de João Canijo
Por VASCO T. MENEZES

Dalila (Ana Bustorff) sente a vida fugir-lhe e, aos trinta e muitos anos, apercebe-se de que não vai demorar muito a deixar de ser nova. Insatisfeita com a sua condição de mulher do ourives Marcolino Barrote (Vítor Norte), um homem rude que a maltrata, e com o dia-a-dia que leva na província, em Sines, decide transfigurar-se.

Após a apreensão pela polícia, numa feira, de grande parte da mercadoria do casal (por Marcolino não possuir a necessária licença para vender o ouro), e aproveitando a ida a Lisboa para uma consulta de oncologia, Dalila muda da noite para o dia. Quando regressa a Sines, já é outra: mini-saias e roupas exuberantes, cabelo moreno pintado de loiro platinado, de mulher pacata, mãe de família, passa a criatura devoradora.

O encontro com Pompeu (João Reis), um jovem camionista e pseudo-galã ("A menina é uma assassina; a menina atropelou-me a alma com esses olhos") que sonha em abrir uma "pizzaria" no México, potencia o passo seguinte no desejo desenfreado de mudança de Dalila. Os dois tornam-se amantes; ela, porque não quer "morrer outra vez", agora que encontrou "uma vida nova", diz-lhe que ele não a pode abandonar nunca; ele, seduzido, responde-lhe com juras de fidelidade eterna. Fica assim aberto o caminho para a etapa final no percurso de Dalila. Que, já depois de uma operação ao peito e de ter sido, mais uma vez, vítima dos abusos do marido, consegue convencer Pompeu a livrar-se de Marcolino...

Fernando Lopes, Joaquim Leitão, Luís Filipe Rocha: exemplos de cineastas portugueses que já passaram (alguns mais do que uma vez) pela série Y. Uma lista que está prestes a conhecer outro nome: amanhã, será a vez de João Canijo se estrear na colecção de DVD do PÚBLICO, com a sua terceira longa-metragem, "Sapatos Pretos" (1998), inspirada numa história verídica ocorrida, seis anos antes, no Alentejo, em Reguengos de Monsaraz.

O resultado (a marcar o início de um "renascimento" na carreira do realizador, depois de oito anos sem filmar para cinema) é um retrato brutal e fascinante do Portugal profundo. A partir de um "fait divers" sanguinolento e de elementos típicos da tradição "noir" - o triângulo amoroso entre mulher, marido e amante -, Canijo assina uma versão subversiva e tragicómica dos dramas de "faca e alguidar", apostando numa estilização excessiva que aproxima tudo do abstracto. Destaque ainda para o trio admirável de intérpretes: acima de tudo, a "carnívora" Ana Bustorff, mas também Vítor Norte e João Reis.