"As
Asas do Desejo", na Série Y
Quarta-feira, 14 de Abril
de 2004
Por VASCO T. MENEZES
Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) são dois
anjos. Estão muitas vezes sentados nas asas da estátua
da Vitória, o Siegessäule no centro de Tiegarten.
O olhar estende-se para lá do Reichstag e das portas
de Brandenburgo. Para lá do muro.
Berlim vista de cima - a preto e branco
- é caótica, fechada, ruidosa. Mas há
uma outra cidade que se estende do outro lado da fronteira,
vazia, sublime, fria e austera (como a Paris de Jacques
Tati?)
Os dois anjos, sentados num stand de
automóveis da BMW, conversam sobre homens. Conseguem
ouvir os seus pensamentos - uma mulher passa de bicicleta,
um suicida no edifício da Mercedes Benz, crianças
que jogam à bola, mulheres e homens no metropolitano.
Ouvem as vozes de dentro. Mas não conseguem alcançar
mais nenhum sentido dos homens - não cheiram, não
vêem cores, nem têm tacto, nem paladar.
"Às vezes farto-me desta
eterna existência de espírito", diz Damiel.
O seu desejo (e é o desejo que o fará perder
as asas) é ter febre, ficar com os dedos sujos ao
ler o jornal, mentir, andar. "Poder entusiasmar-me
com o mal", diz Cassiel.
Anjos que querem ser homens? Apenas
um conseguirá, Damiel, por amar uma mulher. Cassiel
só mais tarde se tornará homem - mas isso
só acontece no próximo filme (a sequela deste
"Asas do Desejo") "Tão Longe, Tão
Perto", de 1993, em que Wenders regressa a Berlim para
misturar anjos com a máfia russa...
Damiel apaixona-se por uma acrobata
de circo, Marion (Solveig Dommartin, o primeiro papel no
cinema e o primeiro para Wenders, que voltaria a filmá-la
em "Até ao fim do mundo" e "Tão
Longe, Tão Perto"). E é o amor (o desejo?)
que o fará ver a cores, sentir o frio na garganta,
o calor do café.
"As Asas do Desejo"
(1987) marcou o regresso de Wenders à Alemanha, após
"O estado das Coisas" (1982) ou "Paris, Texas"
(1984) - e aqui voltou a colaborar com Peter Handke no argumento.
E este foi também um filme para "sarar feridas
de guerra" - "Não consigo encontrar a Potsdamer
Platz. Seria aqui? Não pode ser." Há
um homem, Homer (Curt Bois), que vagueia pela cidade (como
um anjo?) à procura de lugares antes deste tempo.
Procura a infância da história, que perdeu
o seu narrador. O muro ainda divide as pessoas, ainda há
fronteiras na cidade. Cada indivíduo é um
Estado, ainda é preciso saber a senha para poder
entrar no coração das pessoas. E só
os anjos o conseguem.