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A Máscara – Loucura Animada
Quinta-feira, 18 de Março de 2004
Por VASCO T. MENEZES

É o tiro de partida da nova série Y. Por via de uma máscara, um tímido empregado bancário transforma-se num truculento diabrete de cara verde. No centro deste turbilhão está Jim Carrey, desenho animado de carne e osso.

Amem-no ou odeiem-no, a verdade é que Jim Carrey é uma vedeta inclassificável e experimental como poucas. Afinal, de que outro modo poderíamos descrever alguém que atingiu a notoriedade enquanto intérprete de comédias “tontas” (“Ace Ventura: Detective Animal”, de 1993, vem à cabeça), soube confundir as expectativas dos fãs, fingindo que lhes dava mais do mesmo – falamos do lado “negro” deixado à solta na sátira ácida de Ben Stiller, “O Melga” (1996) –, e conseguiu demonstrar toda a versatilidade dramática em “The Truman Show” (1998) ou no belíssimo “Homem na Lua” (1999), de Milos Forman? Conclusão: na carreira do multifacetado Carrey, os golpes de rins proliferam, prova da capacidade admirável para correr riscos e se reinventar. E nessa caminhada que levou um “simples” cómico a ser reconhecido como figura “respeitável” houve um primeiro momento decisivo: precisamente “A Máscara” (1994), o DVD que hoje inaugura a série Y Parte IV, estrondoso êxito comercial que catapultou o actor para o superestrelato. Aconteceu há dez anos, quando Carrey já tinha entrado na casa dos 30, o que deixava transparecer não se tratar de um principiante. E, de facto, para trás ficava já muita coisa… Como tantos outros aspirantes no campo do riso, começou a fazer o trajecto dos “comedy clubs” e, no princípio dos anos 80, já ganhara algum nome no circuito dos cómicos “stand-up”. Por essa altura, iniciou a transição para a representação “pura” com o papel principal na “sitcom” “The Duck Factory” (1984). O programa não resistiu muito tempo, levando Carrey a tentar a sorte no cinema. Ao longo da década, andou a bater à porta de Hollywood, mas o sucesso demorava a chegar. Explicação: papéis principais em produtos obscuros dos quais não reza a história – a comédia de terror “Once Bitten” (1985) assenta que nem uma luva – e participações, demasiado secundárias (e fugazes) para serem notadas, em filmes com outra visibilidade, como “Peggy Sue Casou-se” (1986), de Francis Coppola, “Earth Girls Are Easy” (1989), fantasia musical assinada por Julian Temple, ou dos veículos menores para Clint Eastwood, “Na Lista do Assassino” (o quinto e último “Dirty Harry”, em 1988) e “Cadillac Corde- Rosa” (1989).

Homens e “cartoons” cruzados

A “salvação” veio com “In Living Color”, o regresso à TV, entre 1990 e 1994. Num “show” afro-americano de comédia em “sketches” criado pelos irmãos Wayans, Carrey era “o tipo branco”, responsável pela composição de uma galeria de personagens bizarras que lhe trouxeram finalmente a merecida atenção. Resultado: quando voltou a experimentar o grande ecrã, fê-lo já com outro estatuto. Por isso, 1994 foi mesmo baptizado de “O ano de Carrey”: no espaço de 12 meses, protagonizou três filmes – “Ace Ventura”, “A Máscara” e “Doidos à Solta” – que o transformaram em fenómeno de bilheteira. E, de entre os três, o objecto do meio é indiscutivelmente o mais aliciante.

Porquê? Simples: é aquele que melhor serve a “persona” tresloucada de Carrey, motor de todo o filme, que domina do princípio ao fim (no entanto, seria injusto não destacar as preciosas contribuições de Cameron Diaz, em estreia cinematográfica, e de Max, que “interpreta” Milo, provavelmente o cão mais expedito de sempre…). Feito nada irrelevante, pois não é fácil encontrar material adequado à flexibilidade corporal de uma presença excessiva. O truque do filme de Chuck Russell reside assim na inserção de um corpo que já é “irreal” (afinal, em “Ace Ventura” falava através do rabo e “rebobinava-se” a si mesmo…) no domínio da irrealidade pura.

Trocando por miúdos: a história do tímido empregado bancário que descobre uma máscara “viking” e se transforma numa criatura algures entre um herói de BD (afinal, trata-se da adaptação de um “comic” da Dark Horse) e um sátiro truculento segue a lógica de um “cartoon”, permitindo ao protagonista, Stanley Ipkiss, contorcer-se e esticar-se para lá do impossível, sem preocupações de plausibilidade. Ou seja, possibilita a Jim Carrey, boneco de carne e osso, elevar ao quadrado a loucura animada e a energia selvagem que são a sua marca, ao mesmo tempo evitando o efeito de estranheza que esse furacão forçosamente causaria num objecto mais “realista”.

Por aqui se percebe que muito do charme de “A Máscara” releva da promiscuidade que assalta a relação entre dois mundos diferentes: o dos humanos e o dos desenhos animados. Em vez de surgirem como realidades estanques em convívio (opção tomada, recorde-se, em “Quem Tramou Roger Rabbit?”), misturam-se e dão origem a algo de híbrido. Sendo assim, faz todo o sentido que muitas das diabruras deste herói “sui generis” se desenrolem sob o prisma da citação directa dos “cartoons” da Warner, cuja anarquia demencial o filme procura (e, em grande parte, consegue) emular. Só a título de exemplo, entre as inúmeras personagens – criadas por mestres como Tex Avery (o seu “Red Hot Riding Hood” chega a ser visto numa TV) e Chuck Jones – de quem o “alter ego” de Stanley se apropria das características estão ícones como Bugs Bunny, Yosemite Sam, Pepe Le Pew ou o Diabo da Tasmânia.

O processo podia redundar na mera colecção de “piscadelas de olho”, mas para além de provocar “gags” suculentos, muitos a roçar a antologia (o número musical de “Cuban Pete” leva a palma), enquadra-se perfeitamente naquele que parece ser, em última instância, o objectivo primordial do realizador e do filme: homenagear a cultura “pop” (a dada altura, perde-se a conta a todos os actores que Carrey vai parodiando...). Que o faça de forma tão divertida e esfuziante, exibindo uma saudável recusa em levar-se a sério, só aumenta o nosso prazer. “Smokin'!”