Trivia        Fotos        Screensavers        Wallpapers        Passatempos        Artigos
SerieY 3
"A Bela Época"
 

“A Bela Época”
Por Vasco T. Meneses

 

Há festa no campo Num casarão no campo espanhol dos anos 30, um jovem desertor e quatro irmãs envolvem-se em jogos de alcova, às voltas com o fervor do desejo.

 

Desavergonhadamente feliz, “A Bela Época” é um filme tocado pelo frenesim da vida. Por Vasco T. Menezes Não há duas sem três. Deve ter sido mais ou menos isto que atravessou o pensamento de muitos espanhóis no dia 21 de Março de 1994. Nessa data, a Academia das Artes e Ciências Cinematográficas (que é como quem diz, Hollywood) rendia- se, pela terceira vez na sua história, ao cinema de “nuestros hermanos”. Cortesia de “A Bela Época/Belle Époque” (1992) e de Fernando Trueba, o terceiro realizador espanhol a receber o Óscar para o melhor filme estrangeiro.

 

Antes dele, apenas Luis Buñuel (com “O Charme Discreto da Burguesia”, em 1972) e José Luis Garci (graças a “Voltar a Começar”, em 1983) tinham sido galardoados com aquela estatueta dourada (até hoje, só Pedro Almodóvar repetiu o feito, em 2000, com “Tudo sobre a Minha Mãe”). Por isso, o prémio de Trueba foi recebido em Espanha com grande alvoroço. Aliás, as declarações de algumas figuras ilustres do panorama cultural do país vizinhos atestam bem o grau de entusiasmo então sentido: se o escritor Camilo José Cela comentou que “é bom que vejam do que somos capazes”, o realizador García Berlanga não foi menos comedido na revelação do que lhe ia na alma, com um: “É um orgasmo, estou a levitar...” Outros, no entanto, preferiram deitar um pouco de água na fervura. Foi o caso de Rafael Azcona, coargumentista do filme, que lembrou: “Já no passado outros o receberam e não aconteceu nada.”

 

Mas, pelo menos no que diz respeito a Trueba, até aconteceu. E não foi pouco, já que o Óscar lhe permitiu concretizar o sonho de fazer uma comédia americana (e não necessariamente um filme nos Estados Unidos, como o realizador, em entrevistas, se prontificou a esclarecer...). Do convite feito pela indústria americana nasceu “Two Much” (1996), produção recheada de estrelas (Daryl Hannah, Eli Wallach, Joan Cusack, Danny Aiello), que (à falta de outras razões) ficará para a história como o palco da formação do casal Antonio Banderas/Melanie Griffith. Mas isso são contas de outro rosário...

 

Voltando a “A Bela Época”, diga-se ainda que também houve quem menosprezasse a importância do Óscar atribuído, preferindo justificá-la com razões extracinema, tais como a força de um hipotético “lobby” hispânico, que a própria ascensão meteórica (por esses dias...) de Banderas em direcção ao superestrelato internacional supostamente confirmava. Mas não vale a pena enveredar por um discurso cínico, pois os méritos de “A Bela Época” estão bem à vista. Desde logo, a total correspondência entre os objectivos pretendidos e os efeitos alcançados. Dito de outro modo: para Trueba, como o próprio já afirmou por diversas vezes, o cinema deve, acima de tudo, divertir e fazer rir, e é precisamente isso — risos e boa disposição — que o espectador daqui extrai.

 

O argumento, acima de tudo Dir-se-ia mesmo — tal a solidez do projecto, em que tudo bate certo, cada elemento está no seu sítio e se relaciona na perfeição com os demais — estarmos perante um exemplo paradigmático do tipo de filme que deveria surgir de uma eventual indústria europeia de cinema. De facto, se nos lembramos dos artesãos que outrora laboravam no conforto do “studio system” americano (e recorde-se que Trueba, um apaixonado da “idade de ouro” de Hollywood, sempre confessou dever tudo ao “gigante” Billy Wilder, a quem agradeceu quando do Óscar: “Gostava de acreditar em Deus, mas acredito apenas em Billy Wilder”), é porque Trueba, tal como eles, se mostra acérrimo defensor da importância do argumento, como base de todas as coisas cinematográficas. Abordagem essa que não sai aqui descurada, e por boas razões, já que o guião de “A Bela Época”, de uma inteligência a toda a prova, é o maior trunfo do filme. No início dos anos 30, algures no campo espanhol, um jovem desertor, Fernando, é acolhido por um velho pintor, Manolo, e as suas quatro filhas, pelas quais se deixa seduzir. As peripécias sucedem-se (até que Fernando se decida finalmente por uma das beldades) e a farsa sexual que se vai jogando alegremente pelos quartos do casarão de Manolo entrecruza-se de forma astuciosa com um olhar profundamente satírico sobre a sociedade da época, dividida entre defensores da monarquia e apoiantes da república. Nesta comédia pitoresca, os diálogos são de um vernáculo inspiradíssimo, as situações de uma deliciosa comicidade absurda, os actores irresistíveis e as personagens (todas elas, sem excepção, com espaço e tempo para respirar e existir) impagáveis (por exemplo, Manolo, “infiel, rebelde e libertino por natureza”, mas por questões de “impossibilidade prática”, um “circunspecto burguês”; o padre herege; ou Juanito, um “menino da mamã” rico, que, por amor, muda de ideologia como quem muda de camisa). “Filme que milita a favor do prazer e da tolerância” (Trueba “dixit”), o seu ritmo frenético, o cenário bucólico e idílico e a atmosfera de voluptuosa sensualidade que dele se liberta concorrem para uma esfuziante celebração da vida. E nostálgica, claro, pois se este estado de feliz exaltação que esvoaçava por uma Espanha prestes a tornar-se republicana pudesse ter perdurado mais um pouco, talvez a história do país tivesse sido outra... Daí o sopro de melancolia que varre o final de “A Bela Época”, em que a morte vem ensombrar o paraíso, anunciando os horrores futuros (e tão próximos) de uma guerra cCivil sangrenta e da tenebrosa ditadura que dela resultou.