"Camarate", Um
Filme Sobre Uma História Mal Contada
Isabel Braga
A queda, ainda não totalmente esclarecida,
do Cessna que transportava Sá Carneiro e Amaro da Costa
sobre Camarate, um bairro contíguo ao aeroporto de Lisboa,
foi um acontecimento brutal.
Tão brutal que, para ser assimilado por
uma sociedade recém-entrada na democracia, muito menos
descrente nos seus políticos e instituições
do que a actual, era preciso uma explicação. A
explicação
apareceu de imediato - tudo se resumira a um acidente.
Mas nunca se percebeu bem que acidente foi aquele,
dadas as muitas falhas reveladas sobre a investigação
que foi sendo feita ao longo dos anos. Com o tempo, e sem que
nada viesse iluminar os cantos escuros do caso, o trauma foi-se
transformando em mal estar. Uma história mal contada,
portanto.
O filme "Camarate", de Luís Filipe Rocha,
conta essa história com princípio, meio e fim,
mas à sua
maneira, ou seja, à luz de uma conspiração
envolvendo as autoridades - do governo à polícia,
do Ministério Público aos tribunais - para matar
não Sá Carneiro, mas Adelino Amaro da Costa, evitando
assim que o ministro da Defesa fosse por diante com a investigação
exaustiva que mandara realizar à forma como foram gastos
os milhões do Fundo de Defesa do Ultramar. Esta também é,
para muitos portugueses, a chave do mistério.
A reabertura do processo
No papel principal está uma magistrada do Ministério
Público, Luísa Ramos (Maria João Luís),
que, já no final dos anos 90, tem que decidir se arquiva
o processo por falta de provas de que se tratou de um atentado,
ou deduzir acusação.
Contra a opinião dos amigos, a magistrada resolve reabrir
o processo de Camarate, que estava arquivado - armazenado em
caixotes empilhados numa antiga cozinha, que faz parte do tribunal,
num retrato bastante vivo das instalações judiciais
portuguesas. Luísa Ramos toma a decisão depois
de receber a visita de um personagem misterioso, outro juiz,
Manuel Mesquita, colocado em Macau e que vem a Lisboa pô-la
a par daquilo que, na sua opinião, motivou o atentado.
A conspiração contra o ministro da Defesa, Amaro
da Costa, e a investigação que ele mandara fazer
ao Fundo de Defesa Militar do Ultramar, na sua dependência, é relatada
por este juiz a Luísa Ramos, que enquadra todas estas
movimentações num pano de fundo, a Guerra Fria,
e, mais concretamente, a guerra Irão-Iraque, o embargo
de venda de armas ao Irão e o papel de Portugal como plataforma
no fornecimento clandestino de armamento aos dois países
em guerra. É um diálogo com muitas perguntas e
respostas, esclarecedor para quem ouve, mas demasiado longo,
como há muitos neste filme, onde a pobreza de recursos é por
vezes excessivamente evidente.
Depois de ouvir esta versão do juiz de Macau, a magistrada
aceita a ajuda do pai, um antigo professor de direito (Filipe
Ferrer), para estudar o processo. E é mais uma vez através
dos diálogos entre os dois que se percebe o que aconteceu,
que ela é informada sobre os relatórios que desapareceram,
as pessoas que pareciam ser testemunhas-chave do processo e nunca
foram ouvidas, as peritagens que ficaram por fazer, as provas
materiais que se julgava estarem a salvo e que nunca mais foram
vistas; que não houve investigação, em resumo.
Falta drama a tudo isto, é evidente, e o assunto é árido.
Em termos de tensão dramática, o filme é,
portanto, pouco complexo, apesar dos ingredientes a que o argumentista
(o próprio Luís Filipe Rocha) deitou mão:
Luísa Ramos é obrigada a abortar por razões
de saúde, há ainda um triângulo amoroso em
que ela é o centro, tendo de um lado o namorado actual
- um juiz, interpretado por Virgílio Castelo - e, do outro,
o namorado antigo, um deputado, interpretado por José Wallenstein.
Este namorado está implicado no problema das viagens fantasmas
da Assembleia da República e tenta envolvê-la nesse
enredo, mais uma originalidade do argumento que, deste modo,
chama a atenção para uma realidade muito portuguesa:
neste país, nunca nada se esclarece definitivamente, por
isso também nunca nada sai da ordem do dia, nem a tragédia
da morte de um primeiro-ministro há 23 anos, nem um escândalo
político acontecido há 14.
O final de "Camarate" não é apoteótico,
apenas muito lógico, acaba com a magistrada a conseguir
demonstrar na prática que o Cessna pode voar com o motor
da asa esquerda desligado, num convite ao espectador para que
tire as suas conclusões. E a verdade é que voa
mesmo.
O filme é de ver? Sim, sem dúvida, é inteligente,
sério e bem interpretado. Também é um filme
emotivo e contido. É de ver na mesma medida em que é de
ler "O Crime de Camarate", do advogado Ricardo Sá Fernandes.
Um livro, primeiro, e um filme a seguir, ajudarão sem
dúvida a fazer o luto que faltou a seguir a 4 de Dezembro
de 1980, quando toda a gente preferiu, simplesmente, esquecer
a tragédia daquela noite.
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