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SerieY 3
"Camarate"

Críticos por um dia: três deputados dão estrelas a “Camarate”

 

António Braga, Partido Socialista, Classificação ***

 

Ao revisitar a portuguesíssima fita sobre Camarate, ocorreu-me “Titanic”. Podia ter sido “JFK”, mas não.

 

“Titanic” guia-se por uma história de amor, inspirada no testemunho de uma sobrevivente. Ilustra a arrogância da técnica e dos técnicos que afundou o transatlântico mais poderoso da época. Alinha provas com inteligência. Deixa a apreciação das pessoas envolvidas nas falhas de condução do navio para o espectador. Como quando o operador de telégrafo, inundado por inúmeras mensagens de passageiros, desvaloriza com ar sobranceiro a comunicação que lhe chega de um outro transatlântico que avisava do eminente perigo do gelo. Descuido fatal, intui-se. Ou, no curto diálogo entre o engenheiro, criador da inafundável máquina, e o comandante a propósito da velocidade máxima que acabam por imprimir na navegação. Fatídica decisão, percebe-se. O enredo, fluente, alimenta o romance da então jovem testemunha com um rapaz, passageiro por um acaso da... “sorte” ao jogo.

 

Também Sá Carneiro não tinha lugar marcado naquele perigoso avião. Possuía reserva na TAP quase à mesma hora, para o Porto.

Mas “Camarate”, sendo filme de tese, mostra obsessões comprometedoras do guião. Trata quem o visiona com a violência da imposição. Marca longas cenas e diálogos para demolir a isenção da juíza (por ter arquivado o processo) e a acção dos políticos (por desleixo). Aborda os militares como conspiradores, a Policia Judiciária como incompetente. O Parlamento escapa, sem surpresa, pois é o espaço para todas as teses.

 

O atentado está por detrás de cada palavra do guião. Daí ao convencimento vai uma grande distância e a película aumenta-a. As cenas intensificam subjectividades. Mas o Cessna não resistia a uma emergência. Quem embarcava jogava à roleta russa. Havia de cair. Voar já era um atentado.

 

 

Gonçalo Capitão, Partido Social-Democrata, Classificação ****

 

“Camarate” é, definitivamente, o nosso “JFK”. Luís Filipe Rocha aponta, sem rodeios, para a tese segundo a qual o caso de Camarate é um atentado.

 

Embora fosse, “a priori”, a minha própria convicção, qualquer espectador verá que tudo se conjuga com mestria para que chegue à mesma conclusão.

 

Começando pelos pormenores, e embora temendo maquiavelismo meu, eles são meticulosos: um livro sobre Camarate colocado às avessas sobre uma mesa, o lado humano de uma juíza que julga, antes, um parricídio, e que “evolui” dos tempos do MRPP até à presente abertura de espírito, e mesmo o facto de o seu namorado, magistrado do Ministério Público e partidário da tese do acidente, beber álcool, enquanto o seu ex-marido, deputado e adepto da tese oposta, bebe água (não acredito em bruxas, mas…).

 

Depois, temos a denúncia das corporações que alicerçam a ideia de conspiração para ocultar o atentado. Peritos, Ministério Público, Conselho Superior da Magistratura, Polícia Judiciária, militares e políticos no activo, em 1980, são magistralmente envolvidos numa teia de incompetência, omissão, chantagem, ilicitude e branqueamento, que nos prepara para aceitar a “estocada de morte”.

 

Falo da conversa entre a magistrada e o professor universitário (seu pai), em que toda a tese de atentado é substantivada em detalhe com dados técnicos de voo, testemunhas oculares (incluindo o chefe de segurança de Sá Carneiro) e vestígios negligenciados, em três “andamentos”, que perfazem mais de 22 minutos de filme.

 

Um senão que esgana a sereia que tão bem vinha cantando: ao móbil do atentado (em que, repito, acredito) resta 1 minuto e 23 segundos de uma conversa de nem 4 minutos, num filme de 2 horas e 15 minutos…

 

Sabe sempre a pouco, quando o atacante escaqueira a defesa e, depois, remata ao poste.

 

 

Joana Amaral Dias, Bloco de Esquerda, Classificação ****

 

O filme de Luís Filipe Rocha não é apenas um filme sobre Camarate, esse episódio sebastianesco e fatídico da vida política e social portuguesa, mas antes um exercício reflexivo sobre a ética política e social, a ética do Estado... a ética humana.

 

“Camarate” inicia-se, precisamente, com o momento do último voo e morte de Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e seus acompanhantes e, enquanto se desvela a história e a não-história da investigação, num enredo que se adensa sobre as contradições e lacunas que jamais se esclarecem, o espectador entrelaça-se num outro enredo e drama. É a narrativa de uma juíza, uma mulher-juiz, que assiste, impotente talvez, à sua vida ser promiscuamente e por vezes perversamente inter-tecida sobre as incógnitas e pressões em torno do apuramento da verdade sobre Camarate.

 

Luísa Ramos, justamente interpretada por Maria João Luís, é confrontada com o seu passado e o seu futuro pessoal, que, na esteira dessa mesma perversidade, parece teimar em enquinar, como se de uma gravidez impossível se tratasse, num quadro de relacionamentos demasiado turvos pelas relações e interesses “profissionais”.

 

Anéis recorrentes e viciosos, onde todos os homens da vida desta mulher-heroína — o seu pai, o seu ex-marido, o seu namorado, o seu mestre — emergem como tal mas também como eventuais traidores, numa dissimulação insinuada mas jamais manifesta. Uma atmosfera saturada e ameaçadora que Luísa Ramos insiste em aclarar, a bem da sua própria tranquilidade, mas também a bem da nação, de um país que terá ficado privado da verdade.

 

A primeira vez que vemos a heroína ela confunde-se com a própria representação pictórica da Justiça, numa indistinção figura-fundo. A juíza é metáfora da Justiça, e será provavelmente essa duplicidade o aspecto mais conseguido do filme. Essa mulher cega, guerreira e sage que se bate até ao final pela verdade e idoneidade e contra a mentira e a “deterioração” do poder. Será a questão nuclear apenas eternamente contemporânea, como a de Goethe em Fausto, ou antes poderíamos pensar que, nesta altura tão turbulenta e frágil da sociedade portuguesa, quase dá pena a pertinência e actualidade deste filme...