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SerieY 3
"Em carne viva"

"Em carne viva"
de Pedro Almodóvar
Sara Gomes

 

 

Algures entre o “thriller” e a tragédia clássica, o cineasta das mulheres gravita agora em torno do universo político e masculino. Um Almodóvar maduro e sombrio

 

Anos 70. Espanha. Madrid. Uma jovem prostituta (Penélope Cruz) dá à luz num autocarro. Nasce Victor. Vinte anos mais tarde, Victor (Liberto Rabal) invade a casa de Elena (Francesca Neri), que conheceu num bar e com a qual teve a sua primeira experiência sexual. Um conjunto infeliz de acasos leva ao aparecimento de dois polícias e um deles é baleado nas costas, ficando imobilizado para sempre. Victor é preso e decide vingar-se de David (Javier Bardem), o polícia que ficou paralítico e que, além de se ter transformado numa estrela de basquetebol nos Jogos Paralímpicos de Barcelona 92, também se casou com Elena.

 

Este é o ponto de partida de “Em Carne Viva” (1997), de Pedro Almodóvar, que nasce da adaptação do romance “Live Flesh” (em português “Carne Eléctrica”) de Ruth Rendell. Se o núcleo romanesco central é comum em ambas as narrativas — um rapaz é preso acusado de ter disparado sobre um polícia e alimenta desejos obsessivos de vingança — , a verdade é que as semelhanças acabam por aí.

 

A partir da exploração dos fantasmas sexuais e complexos de culpa que assaltam as personagens do filme, Almodóvar faz uma leitura complexa do destino e das mudanças políticas e éticas que Espanha sofreu com o franquismo. Uma novidade na obra do cineasta, que apesar de reconhecer que “nenhum filme é uma obra apolitizada”, nunca tinha abordado o franquismo de uma forma tão directa.

 

Mas esta não é a única ruptura. Ao contrário daquilo a que nos vinha habituando com os filmes “Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1987), “Ata-me” (1989) ou “Saltos Altos” (1991), em que as figuras femininas sempre ocuparam o centro do seu universo cinematográfico, Almodóvar apresenta-nos agora uma visão mais masculina, mais viril.

 

Os medos e os desejos de Victor e David são, na verdade, os catalisadores responsáveis por todas as pulsões que surgem no ecrã, desde o amor ao ódio, passando pela paixão e a vingança, até à esperança e ao desespero. E é também através deles que o cineasta nos dá um olhar mais crítico e comprometido da sociedade.

 

Entre o “thriller” e a tragédia clássica, é difícil definir “Em Carne Viva”, o segundo melodrama a surgir na fase “madura” da obra do cineasta após “A Flor do Meu Segredo” (1995). Mas do que Almodóvar deixa para trás, nasce algo novo. É como se estivéssemos a ver o realizador romper a sua própria placenta. E surgir em carne viva.