Hollywood
na província
Vasco T. Menezes
Em “State and Main”, a invasão de uma
equipa de produção
cinematográfica põe em estado de sítio uma
cidadezinha na América profunda. Do choque de culturas
nasce um dos jogos de enganos mais divertidos de David Mamet.
Por Vasco T. Menezes
Alec Baldwin, Sarah Jessica Parker, Philip Seymour
Hoffman, William H. Macy, Julia Stiles, Charles Durning ou David
Paymer: não será fácil reunir um grupo assim
de actores, entre estrelas consagradas, novas vedetas e alguns
dos melhores secundários que actualmente o cinema americano
tem para oferecer, mas “State and Main” (2000), o título
de hoje na série Y, consegue-o. E a proeza facilmente
se explica se desvendarmos a identidade do responsável
por tão invulgar e talentoso ajuntamento: nada mais nada
menos do que David Mamet, um dos mais importantes dramaturgos
americanos contemporâneos.
Mestre indisputado da palavra, os seus trabalhos
têm como
elo comum diálogos acutilantes e mordazes — o chamado “Mametspeak” —,
explosões ritmadas e profanas de palavras que cortam e
rasgam na sua honestidade brutal. E se as suas peças são
a prova provada disso mesmo, também tem sido sempre assim
desde que começou a voltar a atenção para
o cinema, particularmente a partir do momento em que começou
a aliar ao papel de argumentista o de realizador, com o fulgurante “Jogo
Fatal” (1987). Um filme de Mamet não engana e o seu cinema
dificilmente se confundirá com qualquer outro (não
obstante o esforço de muitos, tal a proliferação,
dentro e fora dos EUA, de objectos que tentam, em vão,
mimetizar os traços da obra do cineasta) no panorama cinematográfico
actual. Mas a coerência do universo mametiano, sempre alheio às
modas e vontades, não se esgota a nível estilístico.
Vai mais longe, é também temática: o engano
e a encenação, a falsificação do
real, são questões caras ao cineasta e, de um modo
ou outro, de forma mais ou menos explícita, todos os seus
filmes vão desaguar aí.
Serão características que melhor
se adequam ao “thriller” e
a exercícios labirínticos à volta dos códigos
do filme “negro” e esse é de facto um género que
assenta como uma luva a Mamet, que desde “Jogo Fatal” a ele tem
voltado com frequência, de “Homicide” (1991) a “Heist” (2001),
passando por “O Prisioneiro Espanhol” (1997). No entanto, apesar
de se inscrever no terreno da comédia pura — a que Mamet
regressa, enquanto realizador, pela primeira vez desde “As Coisas
Mudam” (1988) —, “State and Main” não deixa de fazer eco
das obsessões habituais do autor de “Oleanna”.
Hollywood e a América profunda
A “mise en scène” e o logro estão
inevitavelmente presentes, ou não estivéssemos
perante um filme sobre um filme. O cinema, já se sabe, é a
arte suprema da mentira e do fingimento e a equipa de produção
que chega de Hollywood e aterra na pequena cidade de Waterford
vai não só colocar em cena a ilusão de uma
realidade — o filme de época que aí pretendem rodar —,
como também tentar transportar para aquele cenário
bucólico e provinciano os vícios e tiques que fazem
o dia a dia da “Meca do cinema”. Uma paródia à indústria
americana e ao cinema que aí se produz (e tendo em conta
que Mamet costuma navegar por águas independentes)? Sim
e não.
É que apesar de — com a excepção
do sofredor argumentista (e Mamet já confirmou que a personagem
se baseia nas suas aventuras em Hollywood como “prostituto”,
ou escritor contratado, mais ou menos na mesma altura em que
disse que os argumentistas são maltratados na indústria
cinematográfica por fazerem “a única coisa que
os produtores não têm a ilusão de conseguir
fazer; precisam deles e por isso odeiam-nos e temem-nos”) — a
representação da “troupe” hollywoodesca como um
bando de egotistas e vaidosos trapaceiros (embora nem por isso
deixem de exibir o charme que o realizador costuma reservar para
os seus vigaristas) não deixe de configurar uma visão
cáustica da “fábrica dos sonhos”, o que estará mais
em causa para Mamet é a relação que esse “way
of life” tem com a cultura que lhe é exterior, neste caso
a da América profunda.
O que interessa aqui é o conflito entre
linguagens e códigos distintos e por isso o realizador,
sagazmente, não opta pelo que seria mais fácil
(e ingénuo,
coisa que Mamet decididamente não é) — a contraposição
entre a “corrupção” de uns e a “pureza” de outros —,
preferindo baralhar as contas e fazer dos menos prováveis
os mais manipuladores e corruptos. Até porque a Waterford
do início do filme, presa como está aos “clichés” da
América rural, poço de virtudes, do cinema dos
40's (a memória de Frank Capra paira por aqui, tal como
a de um dos mestres da comédia “screwball”, Preston Sturges,
que tanto Mamet como Rebecca Pidgeon, a companheira e musa, evocaram),
só podia estar fadada a revelar-se tão artificial
como o “real” que a equipa de cinema quer aí construir.
O final irónico, em que tudo parece
estar bem quando acaba bem e quase nos esquecemos de que ninguém
saiu ileso e que todos, sem excepção, fizeram concessões
e se deixaram sujar, é apenas a cereja no cimo do bolo
desta pérola de subtileza e inteligência. E depois,
há sempre
pedaços deliciosos de “Mametspeak” para saborear, como
o “Tenho
um dom para a ficção”, eufemismo de Macy, o realizador,
para a sua capacidade épica de aldrabar, ou o “Toda a
gente precisa de um passatempo” de Baldwin, a estrela com especial
predilecção
por raparigas de tenra idade... Na sua aparente ligeireza, sem
dúvida um pequeno grande filme.
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