De
olhos bem fechados
Raquel Ribeiro
São centenas de homens e mulheres a viver
numa cave, longe da luz do sol, imaginando as sombras da liberdad.
"Guerra não é guerra enquanto irmão não mata irmão." Obra maior
de Emir Kusturica, este é o filme de luto pela ex-Jugoslávia,
pais à beira do morte, à deriva no Danúbio - jangada de pedra
dos sonhos de um país perdido na hitória.
1995 foi o ano do balanço da história
dos Balcãs.
Cannes recebeu de braços abertos dois filmes-monumento: "O
Olhar de Ulisses", de Theo Angelopoulos, e este "Underground" de
Emir Kusturica. Um e outro degladiaram-se pela Palma de Ouro.
São frescos políticos dos Balcãs, essa faixa
de Europa em constante convulsão - Angelopoulos filmou
Sarajevo e um homem que procurou as primeiras imagens do cinema;
Kusturica filmou Belgrado e um homem que encerrou numa cave,
durante décadas, centenas de pessoas fazendo-as acreditar
que a guerra ainda não tinha terminado. Kusturica acabou
por levar a Palma de Ouro, 10 anos depois de receber o mesmo
prémio por "O Pai foi em viagens de negócio" e
6 anos depois da melhor realização por "O Tempo
dos Ciganos".
"Era uma vez um país", conta Kusturica.
Em 1941, Belgrado é bombardeada
pelos nazis. Marko e Blacky são dois pseudo-revolucionários,
comunistas, antifascistas da resistência que operam no
mercado negro. Entre eles há uma mulher, Nataljia, e lutarão
pelo seu amor: Marko encerra o amigo e centenas de pessoas numa
cave, porque não é seguro estarem "cá por
cima" enquanto durar a guerra. Para os que viveram no subterrâneo,
a guerra durou mais de 20 anos. Blacky fica lá em baixo,
na "clandestinidade", na "resistência", acreditando cumprir
o dever para com o partido e o país.
Parte I, Guerra - um país entregue às
feras
O bombardeamento atinge o coração
do Jardim Zoológico.
Num cenário caótico de destruição,
mortos-vivos convivem com feras - tigres, leões e elefantes
- e circulam na cidade como se o sangue que cai do céu
fosse o quotidiano.
A guerra invadiu a cidade e estraçalhou
o país,
agora entregue às feras. Era bom proteger as pessoas,
não fosse uma ave de rapina ou um tigre esfomeado, qual
nazi, ameaçar o bem-estar do povo. Na cave estarão
todos mais seguros.
A mulher de Blacky dá à luz um
rapaz que nunca verá o sol. Jovan viverá sempre
debaixo da terra, qual toupeira que fabrica armas e canhões,
histérico
e neurasténico. "Somos todos doidos, Nataljia, só ainda
não fomos informados do diagnóstico", diz Marko.
E só a loucura poderia justificar manter estes homens
e estas mulheres "underground". O que queria Kusturica? Uma crítica
feroz ao comunismo, um clima "orwelliano" de desespero, um país
inteiro acossado pelo regime?
Parte II, Guerra Fria - de olhos bem fechados
Marko casou com Nataljia e é agora influente
membro do partido comunista, braço-direito de Tito. A
produção
de armas corre bem. Na cave ainda está Blacky, resistente
e revolucionário, à espera da libertação,
do fim da guerra. À espera do passado. À espera.
O filho cresceu e prepara-se para casar - mais
uma festa, mais música, mais vodka. A noiva sobrevoa como
um fantasma a mesa dos convidados para o casamento. Nesse momento,
ela é já a
consciência da Jugoslávia, a mulher jovem e bela
cujo casamento acabou antes de ter começado.
Centenas de pessoas continuam "underground",
sem ver o que há para
ver - será cegueira ou vontade? - escondendo-se do mundo.
Foi-lhes imposto um comportamento, uma rotina, uma vida quotidiana.
Foi-lhes imposto um hino - ao "camarada Tito" - e a necessidade
de se esconderem cada vez que o altifalante de Marko gritava
o "Lili Marleen" e a sirene de ataque dos alemães. Continuavam
então, de olhos bem fechados, à espera de deixar
de ver sombras, de passar a cheirar a liberdade.
Parte III, Guerra - jangada de pedra
Com a morte do camarada Marko, conta Kusturica,
foi-se a fórmula
mágica da Jugoslávia de Tito. É um país à beira
da morte. "A Jugoslávia já não existe",
grita o médico a Ivan, irmão de Marko, que também
viveu "underground". E conta-lhe a verdade: que ele viveu durante
mais de 20 anos (que ele acreditou serem "apenas" 15), na escuridão
de uma cave, à espera do fim de uma guerra que já tinha
terminado. Porque há toda uma Europa a viver debaixo da
terra, na cegueira de não querer ver - o trânsito
subterrâneo que percorre o eixo Atenas-Berlim-Roma-Moscovo
assim o demonstra.
Um dia, portanto, a cave desaba, e os habitantes
saem, convictos de que a resistência de tantos anos pôs
fim à guerra.
Mas muitos não resistiram ao apelo da luz do sol - deixaram
de ver sombras, saíram da caverna e assustaram-se com
o mundo. Afinal, outra guerra eclodira entretanto, uma guerra
fratricida que dissolveu a Jugoslávia de Tito. "Guerra
não é guerra enquanto irmão não mata
irmão", diz Marko.
"Não se preocupe", diz o capacete azul, "os
sérvios
matam os croatas, os croatas matam os sérvios". Marko
fica descansado - não pertence a nenhuma facção,
porque ele defende a sua própria causa, o homem que sugou
a vida daqueles que hoje preferem voltar para a cave a ver esse
país que sangra nas entranhas.
São quase três horas de humor hilariante,
de tristezas escondidas, de festas e casamentos, de sedução
e engodo. Hipnótico, alucinante, visceral, vertiginoso, "Underground" é,
sem dúvida, um dos melhores filmes dos anos 90. Kusturica
superou-se, revisitou toda a sua obra, fechou um ciclo, contou
a história do seu país: "Nasci jugoslavo, morrerei
jugoslavo", disse. Mas a Jugoslávia já não
existe - é apenas aquele pedaço de terra que se
soltou do continente, uma ilha à deriva no Danúbio,
a jangada de pedra dos sonhos de um país perdido na história.
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