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SerieY 3
"Manobras nas Casa Branca"

Brincar às guerras
Vasco T. Menezes

 

 

A fronteira entre facto e ficção já não é o que era. Pelo menos, é isso que nos diz, com humor mordaz, "Manobras na Casa Branca", farsa política em que dois "monstros sagrados", Robert De Niro e Dustin Hoffman, "inventam" uma guerra para salvar o Presidente dos EUA de um escândalo sexual

 

Barry Levinson é, acima de tudo, um cineasta desigual. Errático, tem sido capaz do melhor — projectos pessoais, centrados na sua Baltimore natal, como o filme de estreia, “Diner” (1982), “Tin Men” (1987) ou “Avalon” (1990) — e do pior — produtos “mainstream” sensaborões como “Revelação (1994) ou “A Esfera” (1998), indistinguíveis da rotina de tantos outros —, numa carreira que se pauta pelo desequilíbrio evidente.

 

É nas crónicas de pequenos dramas humanos como as referidas em primeiro lugar que o realizador deixa transparecer os seus maiores talentos: uma segura direcção de actores e um agudo sentido de época. Se nada disto está à vista nos seus filmes mais comerciais é porque, em Levinson, o resultado final depende muito (excessivamente, dir-se-ia) do que lhe serve de base. Quando o ponto de partida é suficientemente forte, as coisas funcionam bem. O pior é quando acontece o contrário, pois Levinson parece ser incapaz de golpes de asa que transfigurem o material com que trabalha. Não espanta, por isso, que as suas melhores obras sejam as que o próprio escreveu ou aquelas em que um argumento sem a sua marca permite, no entanto, um envolvimento emocional por parte do realizador.

 

A política e a manipulação mediática

“Manobras na Casa Branca” (1997) cai claramente neste último campo. Apesar de não ter sido escrito por Levinson — é a adaptação de um livro de Larry Beinhart, “American Hero”, por David Mamet e Hillary Henkin — o tema que lhe estava subjacente, a manipulação mediática, interessava sobremaneira ao realizador. Assim, aproveitando um adiamento na produção de “A Esfera” (o infeliz exercício de ficção científica que viria a assinar a seguir), Levinson rodou o filme durante esse hiato, em apenas 29 dias. Um processo pouco usual para uma típica produção de Hollywood, mais próximo antes do estilo “guerrilheiro” de algum cinema independente.

 

O orçamento de 15 milhões de dólares fugia também um pouco aos moldes habituais na indústria, até pela presença de duas das maiores vedetas americanas, Robert De Niro e Dustin Hoffman. Mas foi muito à custa da preciosa contribuição da dupla de actores que o filme pôde ser feito: “Manobras…” é uma co-produção entre as companhias de De Niro, Hoffman e Levinson. Os dois “monstros sagrados” queriam há muito trabalhar juntos e a primeira vez em que tal acontecera tinha sabido a pouco — em “Sleepers” (1996), o filme anterior de Levinson, partilhavam apenas uma cena.

 

Surgiu então a hipótese de uma verdadeira colaboração, nesta história de um consultor político, Conrad Brean (De Niro), e de um produtor de cinema, Stanley Motss (Hoffman), que unem esforços para, durante os onze dias que faltam até às eleições, manter “entretido” o povo americano com uma guerra inventada, e assim desviar as atenções do escândalo sexual em que o Presidente dos EUA se envolveu e garantir a sua reeleição. O que se segue é uma construção em marcha cada vez mais mirabolante, que inclui um rol de fabricações de todo o tipo: bombardeiros, “pastas-bombas”, grupos terroristas dissidentes ou prisioneiros de guerra.

 

Sátira política? Obviamente que sim. O filme lança um olhar cáustico sobre as relações entre os media e a política e a forma como os primeiros podem ser manipulados em favor da segunda, moldando assim a bel-prazer a opinião pública. A mensagem é simples (e assustadora): hoje em dia, a fronteira entre facto e ficção é cada vez mais ténue e, tecnologicamente, as possibilidades de “fingimento” são quase intermináveis. Há, de resto, uma sequência de antologia que mais não faz do que realçar isso mesmo — na placidez de um estúdio de cinema, uma actriz agarrada a um pacote de batatas fritas pode ser transportada, digitalmente, para um cenário bélico dantesco e, por momentos, transformar-se numa jovem albanesa em fuga, gatinho branco ao colo, de uma aldeia em chamas…

 

Comparação inevitável com o caso Clinton-Lewinski

E o logro que vai ser montado por Brean e Motss serve também para frisar que política é espectáculo. O conflito artificial para reeleger um presidente é uma encenação gigantesca, quase uma produção hollywoodesca, com direito a tema, canções, efeitos visuais e protagonistas, numa girândola que parece não ter fim porque “the show must go on”. A virtualização é tal que é como se nada fosse real para lá da “mise-en-scéne” criada. Nem mesmo o Presidente, que é sempre deixado invisível. Não para que o rosto de Bill Clinton (na altura, era ele o “líder do mundo livre” e poucas semanas depois do filme estrear rebentava o caso Monica Lewinski…) se insinue, mas sim para sustentar que o que está aqui em causa é a presidência enquanto cargo e o facto de que, actualmente, a TV é o melhor meio para se vender produtos, sejam eles presidentes ou cervejas…

 

Aliás, o próprio Levinson confirmou a ausência de um ataque directo à administração Clinton: “O filme não tem a ver com Clinton nem com nada de específico na sua administração. É mais sobre os media e a manipulação diária da realidade, o modo como as coisas são fabricadas, o que vai sendo cada vez mais sinistro devido aos avanços tecnológicos. Ver já não é crer.”

 

Mas se já não podemos acreditar no que vemos, podemos pelo menos ouvir. E se o fizermos, na argúcia cortante dos diálogos — superiormente servidos pela singular dinâmica (da qual vive muito o filme) entre De Niro e Hoffman, com o primeiro a apagar-se para dar espaço ao “show” do segundo (e se Hoffman faz sempre de Hoffman, raras vezes, nos últimos anos, o seu cabotinismo foi tão sedutor) — descobriremos o carimbo do escritor extraordinário que é David Mamet (e nos passes de magia com que se constrói o embuste engendrado encontram-se ecos dos jogos de enganos tão caros ao autor de “O Prisioneiro Espanhol”).

 

A verve do argumento assume-se assim o motor do filme e Levinson teve a lucidez de não a desperdiçar, evitando a armadilha perigosa de carregar na redundância. E, de facto, o que mais impressiona em “Manobras…” (para além de, à luz do caso “Monicagate” e da consequente determinação renovada de Clinton na resolução do conflito no Kosovo, o filme ter, de certo modo, adquirido um carácter profético) é a velocidade com que tudo nos é dito e mostrado. Por vezes, chegamos a aproximar-nos (salvaguardadas as devidas distâncias, claro) de uma comédia “screwball” de Howard Hawks (e o terceiro elemento da equipa presidencial, a conselheira de estado tagarela de Anne Heche, até abria a hipótese de reedição das celebras guerras de sexos hawksianas, o que infelizmente nunca chega a ser concretizado).

 

E se a “Manobras…” falta porventura o delírio de outras reflexões similares — pense-se em “Canadian Bacon” (1995), de Michael Moore, ou “A Segunda Guerra Civil Americana” (1997), de Joe Dante —, mais incisivas na análise da “coisa” política, a verdade é que a elegância e inteligência que demonstra fazem dele um objecto de uma ligeireza lúdica aliciante.