Trivia        Fotos        Screensavers        Wallpapers        Passatempos        Artigos
SerieY 3
"Estrada Perdida"

Planeta Lynch
Vasco T. Menezes

 

 

A história de um amor obsessivo, à volta de duplos, sósias e identidades paralelas, "Estrada Perdida" é uma viagem labiríntica pelos abismos da loucura. Entre o surrealismo e o filme negro, situa-se uma das obras mais misteriosas e fascinantes de David Lynch.

 

Um dos fenómenos culturais mais estranhos (e fascinantes) de que há memória nos últimos anos terá sido o entusiasmo e a aceitação pública que rodearam "Twin Peaks" (pelo menos, enquanto durou a primeira série, entre 1989 e 90), experiência televisiva insólita como poucas e a série mais importante (e influente) da década de 90.

 

De facto, olhando retrospectivamente, parece quase impossível que uma paródia negra e surrealizante às "soap operas" tenha mantido colado à TV o público americano (e não só, pois o sucesso estendeu-se à Europa e Japão), mas a verdade é que a "febre" foi tal que deu origem a um pouco de tudo: programas de rádio e TV, livros, artigos, jogos ou anúncios inspirados em várias personagens. A "Weird Americana" chegava ao "prime time" e, mais do que isso, um realizador de culto, David Lynch, era acolhido pelo "mainstream".

 

No entanto, foi sol de pouca dura: as coisas depressa voltaram ao normal e o "casamento" (in)perfeito terminou. Os primeiros indícios disso mesmo foram dados com "Coração Selvagem" (1990) - entre o "road movie", a fantasia hollywoodesca (as referências a "O Feitiçeiro de Oz") e o melodrama gótico -, que, apesar da Palma de Ouro em Cannes, dividiu a crítica e o público (aliás, uma reacção bastante natural, pois com Lynch costuma ser assim, ou se ama ou se detesta). No entanto, o mesmo já não aconteceu com o filme seguinte, "Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer" (92), talvez o mais mal-amado do cineasta. Lynch regressava assim a "Twin Peaks" com um objecto ainda mais arriscado, uma prequela que, ao invés de juntar as pontas soltas do mistério, como todos esperavam, se divertia a baralhar ainda mais e a empilhar as bizarrias, alienando os que antes assistiam, fascinados, ao retrato da estranheza e violência latentes na América profunda.

 

A desastrosa recepção, comercial e crítica, do filme fez com que o realizador, após a fase mais prolífica da carreira, estivesse cinco anos sem se envolver noutro projecto cinematográfico. Esse período passou-o não só a lamber as feridas, mas, mais importante, a decidir que rumo tomar na encruzilhada em que se encontrava o seu cinema: voltar a apostar no humor que, por mais bizarro que fosse, sempre servia de pequeno paliativo para o negrume reinante, na linha de "Veludo Azul" (1986) ou "Coração Selvagem", ou levar ao limite o processo iniciado em "Os Últimos Dias..." e aproximar-se ainda mais da abstracção pura das curtas iniciais e do magnífico "Eraserhead" (1977)?

 

Vingou a segunda hipótese e daí saiu "Estrada Perdida" (1997). Nele, Lynch trabalhou pela primeira vez em conjunto com o escritor Barry Gifford (aliás, o título original, "Lost Highway", é retirado de um livro de Gifford, expressão que, ao que parece, não saía da cabeça de Lynch), pois os anteriores encontros entre os dois tinham sido de natureza "unilateral": em "Coração Selvagem", o realizador adaptou um romance do escritor, que, em contrapartida, escreveu o argumento para a série de TV "Hotel Room" (1993). À terceira, foi de vez: co-assinaram o argumento e construíram uma história alucinante, em que um homem, Fred (Bill Pullman), depois de assassinar a mulher, Renee (Patricia Arquette) e ser condenado à morte, se transforma em Pete (Balthazar Getty), que acaba por se envolver com Alice (de novo Arquette), loira, que é a imagem exacta da falecida morena...

 

Grande parte da crítica voltou a torcer o nariz (o entusiasmo generalizado ficaria guardado para "Uma História Simples" e "Mulholland Drive") e se, à primeira vista, alguns dos reparos - de que seria um filme "excessivamente complicado" ou "obtuso"- podem parecer fazer sentido, a verdade é que "Estrada Perdida", se for visto como a alucinação de um paranóico dilacerado pela loucura e culpa, não só se torna (não obstante a irracionalidade da sua narrativa) surpreendentemente linear, como resulta numa das obras mais estimulantes de Lynch. Assim interpretado, o filme (pelo menos a partir do momento em que Fred dá lugar a Pete) corresponde à viagem pelo interior de uma mente perturbada, em que um homem obsessivo, corroído pelos remorsos de um acto monstruoso, tenta escapar a um destino inexorável e recriar uma história de amor, para que desta vez ela não termine em tragédia (nesse sentido, "Estrada Perdida" prenuncia o sublime "Mulholland Drive"). Por isso, o impotente Fred fantasia ser um jovem de apetite sexual voraz, aparentemente irresistível para o sexo oposto, mas o elemento de desconfiança que existe nele é tão forte que mesmo o seu sonho se torna pesadelo.

 

Uma versão extremada da "fuga psicogénica", uma síndroma que, como o próprio Lynch explicou, designa "um estado em que a pessoa adopta uma identidade e vida totalmente diferentes, todo um mundo novo"? É bem possível que sim, mas são apenas pistas, pois aqui não há certezas, só questões e hipóteses, ou não estivéssemos em pleno "planeta Lynch", esse mundo secreto para o qual apenas o realizador parece ter mapa, um corredor escuro que nos convida a perdermos nele. Aliás, muito do fascínio do filme (e de todo o cinema lynchiano) reside no facto de, a cada passo, nos desorientar, confundir e deslumbrar. E o "gosto de lembrar as coisas à minha maneira, como as recordo e não forçosamente como aconteceram" de Fred cristaliza o essencial em Lynch: a realidade não é una, antes algo fluído e mutável. Ou, como diz o autor de "Dune", "se as coisas se tornam demasiado específicas, o sonho pára. Quando os mistérios se resolvem, sinto-me tremendamente desapontado. Por isso, quero que sobre sempre algo, para que o mistério se mantenha vivo".

 

Mas no meio de tantas incertezas, uma coisa é certa e é isso que é decisivo aqui: se não o mais radical (ainda e sempre, "Eraserhead"), "Estrada Perdida" é pelo menos o filme mais desesperado e sombrio de Lynch, sem o sentimentalismo e o romantismo "kitsch" que serviam para temperar o negrume dos delírios anteriores. Da junção ímpar dos universos de Lynch e Gifford - com o segundo a potencializar o lado "pulp" que sempre esteve presente na obra do primeiro, refinando os elementos "noir", dos homens em perda às mulheres dúplices (aqui, em mais do que um sentido...), passando pelo tom pessimista de um fatalismo opressivo - nasce o "thriller" surrealista que o realizador há muito perseguia, um mergulho lúgubre no subconsciente, ao mesmo tempo belo e assustador.