Pancadaria
burlesca
Vasco T.
Menezes
Com a memória do burlesco clássico
em pano de fundo, em "Hora de Ponta" comédia e acção
unem-se para uma das mais felizes variações do "buddy
movie". Ou como a maior estrela internacional fora de Hollywood - Jackie
Chan - conseguiu finalmente ser aceite nos EUA.
O subgénero
dos "buddy movies" - filmes em que os dois
protagonistas centrais são forçados a trabalhar
em conjunto, acabando por conquistar o respeito um do outro
e forjar uma relação de amizade - tem sido, desde
há muito, um dos mais populares em Hollywood, inserido
nos mais diversos terrenos, da comédia ao policial,
passando pelo "western" ou o "road movie".
Se as suas origens
podem ser traçadas até às
várias duplas cómicas dos 40's e 50's - Bud Abbott
e Lou Costello; Bob Hope e Bing Crosby; Jerry Lewis e Dean
Martin -,
com o fim da época clássica, o modelo tem sido
aproveitado para os mais diversos desdobramentos.
Desde então,
tem havido um pouco de tudo: "cowboys" (Paul Newman e Robert
Redford, em "Butch Cassidy and the Sundance Kid", de 1969),
vigaristas (o mesmo par, em "A Golpada", 1973), ladrões
(Clint Eastwood e Jeff Bridges, no óptimo "Thunderbolt
and Lightfoot",
1974, primeiro filme de Michael Cimino), polícias
e ladrões
(Nick Nolte e Eddie Murphy, no icónico "48 Horas",
1982, de Walter Hill), polícias e ET (o divertido "The
Hidden",
1987, com Michael Nouri e Kyle Maclachlan), polícias
e. cães
(o ano da "graça" de 1989, com os rivais "K-9" e "Turner
and Hooch", ou seja, James Belushi e um pastor alemão "versus" Tom
Hanks e um "boxer".) ou simples amigas (Susan Sarandon e
Geena Davis, em "Thelma e Louise", 1991, a provar que um
campo tradicionalmente masculino podia acolher também
as mulheres).
Não vale a pena acrescentar mais títulos
a uma lista que seria quase interminável. Bastará realçar
que a variante mais repetida desta fórmula será,
porventura, a do par inter-racial, se não inaugurada por "48
Horas", pelo menos levada aí ao apogeu. Por causa do sucesso
desse filme, têm-se multiplicado, até hoje, inúmeras
ficções (quase todas de originalidade e mérito
artístico nulos) que fazem das diferenças rácicas
e de feitio entre o duo central de opostos o seu motor e razão
de ser.
A obra de estreia de Brett Ratner, "Money Talks" (1997),
inscreve-se também nesta linhagem, colocando em confronto
um pequeno vígaro (o comediante negro Chris Tucker)
e um jornalista sem escrúpulos (Charlie Sheen). Simpático,
o filme confirmou o "star quality" de Tucker, com o actor
a revisitar o "boneco" do malandrim desbocado que Eddie Murphy
cunhara no magnífico "western" urbano de Hill.
O
novo parceiro
Faltava, no entanto, um contraponto mais adequado à energia
maníaca de Tucker do que um Charlie Sheen em piloto automático.
Por isso, para o filme seguinte, "Hora de Ponta" (1998), Ratner
lançou-se em busca de um novo parceiro para o espalhafatoso
cómico.
Praticante de "karate" em criança, o realizador
lembrou-se dos tempos de infância, quando consumia
avidamente os filmes de Jackie Chan, vedeta do cinema de
artes marciais de Hong Kong.
O fã convidou assim o ídolo
a viajar até à América e o "timing" não
podia ser melhor: ao fim de 15 anos a tentar entrar no mercado
americano, onde permanecia apenas um actor de culto (até porque,
dos poucos filmes que aí rodara, só aqueles
em tinha pequenas participações especiais - "A
Corrida Mais Louca do Mundo" e respectiva sequela - triunfaram
comercialmente, já que os restantes, "The Big Brawl" e "O
Protector",
se saldaram por experiências frustrantes), a maior
estrela internacional fora de Hollywood começava a
ver as portas dos EUA abrirem-se-lhe finalmente, graças
ao relativo (e inesperado) êxito do "importado" "Rumble
in the Bronx" (1996).
A escolha de Ratner foi, no mínimo,
feliz. Antes de mais, por Chan, um meia-leca com nariz de
batata e cabelo à Beatles,
ser uma das mais fascinantes figuras do cinema escapista de Hong
Kong, responsável (após se ter libertado do fantasma
de Bruce Lee, de quem era apontado como sucessor) pela lufada
de ar fresco que se sentiu no filme de artes marciais quando,
com o delirante "Drunken Master" (1978), criou um novo género,
a "comédia kung-fu".
De lá para cá, tem
trazido a irrisão ao género e construído
um universo pessoalíssimo, ao interpretar, escrever,
realizar, produzir e coreografar uma série de obras
por onde passa o amor confesso pelo burlesco de Buster Keaton
e Harold Lloyd e pelos musicais de Fred Astaire e Gene Kelly
(afinal, foi educado na Ópera de Pequim, onde estudou
canto, dança,
mímica e ginástica) e uma inusitada dedicação à profissão
(reza a lenda que já partiu todos os ossos do corpo,
por recusar utilizar duplos para as extravagantes proezas
físicas
que arquitecta; por isso, não há filme dele
que não termine com um apanhado de cenas em que as
acrobacias não correram bem...).
Logo, pelo seu rigor
e apurada noção
do tempo, facilmente se deduz que a presença de Chan
só poderia
fazer bem ao típico "action movie" americano (onde,
de resto, as características mencionadas rareiam cada
vez mais), o que "Hora de Ponta" confirma.
Um musical sem
música
Além disso, o pequeno Jackie forma com o gigante Tucker
uma dupla que tem tanto de inesperada como de sedutora, possibilitando
o duelo entre duas escolas (de comédia e representação)
diferentes, com o laconismo do primeiro (que aqui deixa o habitual
número de "palhaço" para o cúmplice) a alimentar-se,
numa química perfeita, da truculência histriónica
do segundo (que convoca toda a tradição "selvagem" da "stand-up
comedy" negra, de Richard Pryor a Arsenio Hall) e vice-versa.
E
se o que distingue as enésimas versões do "buddy
movie" é não só o charme (ou não...)
dos protagonistas, mas também a forma como o material é trabalhado, "Hora
de Ponta" será então um dos seus exemplos mais
felizes nos últimos tempos: entretenimento em estado
puro, feito com assinalável destreza.
O argumento - um
duo de polícias sem nada em comum, a
braços com o rapto em L.A. da filha do embaixador chinês - pouco
se afasta da fórmula costumeira (a matriz óbvia é outra
obra de Hill, o delicioso "Inferno Vermelho", 1988), mas a graça
do filme, que "desliza" surpreendentemente bem, reside sobretudo
nos sucessivos (e inspirados) "gags", à volta de estereótipos
culturais e raciais, com que se constrói o choque de costumes
e personalidades (aqui, a camaradagem nasce das tricas sobre
comida e música).
Mas o mais curioso (e decisivo) é a
forma como a influência
de Chan se faz sentir no resultado final, um musical sem
música
em que a memória do burlesco clássico se faz
sentir no ritmo tresloucado das peripécias.
As digressões
na acção para abrir espaço ao cómico
são constantes - particularmente saborosas a cena
em que Chan e Tucker se testam e desafiam ao som de "War" e
a sequência
final na exposição chinesa, com os objectos
de arte a conservar a todo o custo, entre balas perdidas
e muita pancadaria -, os momentos de luta apresentam uma
dimensão
jocosa e de delírio absoluto (com bancos de bar, bolas
e tacos de bilhar, volantes de automóvel arrancados
e bandejas ao barulho), a paródia é total e
o filme aproxima-se de um irresistível desenho animado.
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