O Elogio do Silêncio. Vivemos num mundo que excluiu o silêncio. A nossa existência está mergulhada numa bolha de ruído permanente ao ponto de, por vezes, o silêncio se tornar incómodo ou mesmo insuportável, criando a necessidade de o preencher com barulho, sons, palavras. Na sociedade ocidental, o silêncio tornou-se sinónimo de solidão, e a solidão num dos maiores medos do homem moderno. A solidão invoca abandono, tristeza, clausura, isto porque se perdeu o prazer de estar sozinhos connosco próprios, do confronto com o nosso eu mais profundo e íntimo, de nos abandonarmos a nós e ao mundo que nos rodeia. Desde muito cedo a educação faz-se no ruído e mesmo no útero o bebé está já mergulhado num universo sonoro, que tende a ser tanto mais intenso quanto mais ruidosa é a vida da mãe. Curiosamente existe uma relação entre silêncio e equilíbrio, e essa relação estabelece-se logo a nível fisiológico, o órgão que capta o silêncio é também o centro do equilíbrio humano, o aparelho auditivo. Silêncio interior. É precisamente no silêncio que a linguagem passa a fazer sentido, que a comunicação se estabelece, que se encontra a harmonia musical. Ao nível musical o ritmo tem a ver com a pulsação, que é a alternância de um som e de uma pausa. O silêncio é a condição prévia a tudo isto. Mas mesmo em termos psíquicos, a perda do silêncio pode ser entendida como estando na base das mais diversas perturbações ou patologias. A incapacidade de fazer parar os pensamentos mórbidos e obsessivos (sintoma de depressão e de neurose), as angústias e a ansiedade (medos e receios de identificação difícil que causam ruído no bem-estar), ou até mesmo, em patologias mais graves. O sofrimento esquizofrénico não passa por se querer fazer parar todos os ruídos interiores que atravessam a mente? E não será o recurso a calmantes e ansiolíticos a que recorre cerca de um terço das sociedades ocidentais, uma tentativa de repor o silêncio interno, ou pelo menos de parar o ruído interior? O tempo do silêncio. O autor começa por fazer um elenco dos diversos silêncios, dos silêncios classificados pelos cientistas: o silêncio breve, da linguagem e das pausas da respiração (a respiração que é tão importante para se alcançar o silêncio na meditação), o silêncio longo, intencional, que serve para reforçar uma ideia, que surge na tomada de decisão ou quando se muda de estratégia argumentativa, ou o silêncio do espanto, do escândalo, do bloqueio. E também fala do silêncio estudado pelos grandes da sociologia nas linguagens não verbais, autores como Erving Goffman ou E. T. Hall que explicam como a organização do quotidiano impõe sinais não verbais para nos posicionarmos face ao outro e como todo um fluxo de comunicação silenciosa permite movermo-nos, adaptarmo-nos e reforçar os laços com os que nos rodeiam. Existem escalas que vão dos silêncios institucionais, dos museus, hospitais, bibliotecas, aos silêncios individuais, reflexivos, tímidos ou contemplativos. Há também o silêncio amoroso, da troca de olhares, ou o silencio castigador dos amuos. Há ainda o silêncio do psicanalista, acolhedor e libertador. Perceber os sons. Podemos argumentar que
o silêncio é relativo, que para além dos mínimos
e máximos da nossa capacidade auditiva existe um sem número
de sons que não conseguimos captar, mas ainda assim essa relatividade
do silêncio é fundamental. Num dos mais belos capítulos
do livro intitulado “A linguagem dos pássaros” o ornitólogo
dinamarquês Knud Vitor explica ao autor a necessidade desse silêncio
para percebermos sons que de outra forma não sabemos que existem:
o bater do ventre da formiga contra o solo para comunicar com as suas
congéneres, ou o encostar do ouvido ao tronco de uma bétula
para ouvir correr seiva no seu interior durante os primeiros dias de Primavera.
O silêncio torna-se assim revelador de segredos fantásticos
da natureza. É sempre no mais absoluto silêncio que o segredo
(seu cúmplice por definição) vem ao de cima, dito
em voz velada a alguém que se cala para ouvir. Texto Miguel C. Martins SOBRE O AUTOR Marc de Smedt nasceu em 1946. Orientalista e autor de várias obras que cruzam os ensinamentos da filosofia oriental com a cultura ocidental foi durante onze anos aluno na prática de meditação zen com o mestre japonês Taisen Deshimaru, onde se iniciou também na filosofia budista. Estudioso das relações entre as diversas religiões, desde o budismo, confucionismo e hinduismo, mas também do cristianismo, judaísmo e islamismo, Marc de Smedt tornou-se numa figura de referência em França na divulgação de obras de filosofia orientais e do estudo paralelo das religiões. Foi um viajante incansável, na juventude, e jornalista em diversas publicações, De Smedt assinou artigos para a revista Planéte, Partir, Nouvelle Observateur, Magazine Litteraire entre outras. É actualmente editor de vários livros sobre filosofia oriental e budismo, dos quais assina quase sempre os prefácios, dirige uma colecção sobre estes temas na editora Albin Michel e é director da revista Nouvelles Clés dedicados a assuntos orientais. Paralelamente ao seu trabalho como ensaísta, publicou em 2001 o seu primeiro romance La legende de Thaluic onde narra o percurso iniciático de um jovem no seu processo de busca do nirvana. Para além do Elogio do Silêncio está também publicado em português a sua última obra: O Elogio do Bom-senso.
|