O Elogio do Silêncio
Marc de Smedt

O Elogio do Silêncio. Vivemos num mundo que excluiu o silêncio. A nossa existência está mergulhada numa bolha de ruído permanente ao ponto de, por vezes, o silêncio se tornar incómodo ou mesmo insuportável, criando a necessidade de o preencher com barulho, sons, palavras. Na sociedade ocidental, o silêncio tornou-se sinónimo de solidão, e a solidão num dos maiores medos do homem moderno. A solidão invoca abandono, tristeza, clausura, isto porque se perdeu o prazer de estar sozinhos connosco próprios, do confronto com o nosso eu mais profundo e íntimo, de nos abandonarmos a nós e ao mundo que nos rodeia. Desde muito cedo a educação faz-se no ruído e mesmo no útero o bebé está já mergulhado num universo sonoro, que tende a ser tanto mais intenso quanto mais ruidosa é a vida da mãe. Curiosamente existe uma relação entre silêncio e equilíbrio, e essa relação estabelece-se logo a nível fisiológico, o órgão que capta o silêncio é também o centro do equilíbrio humano, o aparelho auditivo.

Silêncio interior. É precisamente no silêncio que a linguagem passa a fazer sentido, que a comunicação se estabelece, que se encontra a harmonia musical. Ao nível musical o ritmo tem a ver com a pulsação, que é a alternância de um som e de uma pausa. O silêncio é a condição prévia a tudo isto. Mas mesmo em termos psíquicos, a perda do silêncio pode ser entendida como estando na base das mais diversas perturbações ou patologias. A incapacidade de fazer parar os pensamentos mórbidos e obsessivos (sintoma de depressão e de neurose), as angústias e a ansiedade (medos e receios de identificação difícil que causam ruído no bem-estar), ou até mesmo, em patologias mais graves. O sofrimento esquizofrénico não passa por se querer fazer parar todos os ruídos interiores que atravessam a mente? E não será o recurso a calmantes e ansiolíticos a que recorre cerca de um terço das sociedades ocidentais, uma tentativa de repor o silêncio interno, ou pelo menos de parar o ruído interior?

O tempo do silêncio. O autor começa por fazer um elenco dos diversos silêncios, dos silêncios classificados pelos cientistas: o silêncio breve, da linguagem e das pausas da respiração (a respiração que é tão importante para se alcançar o silêncio na meditação), o silêncio longo, intencional, que serve para reforçar uma ideia, que surge na tomada de decisão ou quando se muda de estratégia argumentativa, ou o silêncio do espanto, do escândalo, do bloqueio. E também fala do silêncio estudado pelos grandes da sociologia nas linguagens não verbais, autores como Erving Goffman ou E. T. Hall que explicam como a organização do quotidiano impõe sinais não verbais para nos posicionarmos face ao outro e como todo um fluxo de comunicação silenciosa permite movermo-nos, adaptarmo-nos e reforçar os laços com os que nos rodeiam. Existem escalas que vão dos silêncios institucionais, dos museus, hospitais, bibliotecas, aos silêncios individuais, reflexivos, tímidos ou contemplativos. Há também o silêncio amoroso, da troca de olhares, ou o silencio castigador dos amuos. Há ainda o silêncio do psicanalista, acolhedor e libertador.

Perceber os sons. Podemos argumentar que o silêncio é relativo, que para além dos mínimos e máximos da nossa capacidade auditiva existe um sem número de sons que não conseguimos captar, mas ainda assim essa relatividade do silêncio é fundamental. Num dos mais belos capítulos do livro intitulado “A linguagem dos pássaros” o ornitólogo dinamarquês Knud Vitor explica ao autor a necessidade desse silêncio para percebermos sons que de outra forma não sabemos que existem: o bater do ventre da formiga contra o solo para comunicar com as suas congéneres, ou o encostar do ouvido ao tronco de uma bétula para ouvir correr seiva no seu interior durante os primeiros dias de Primavera. O silêncio torna-se assim revelador de segredos fantásticos da natureza. É sempre no mais absoluto silêncio que o segredo (seu cúmplice por definição) vem ao de cima, dito em voz velada a alguém que se cala para ouvir.
Existem pois muitos silêncios. Todos eles criam homoestase nos sistemas abertos que somos nós. Mesmo depois de uma noite de dança frenética na discoteca com décibeis acima da média, o bem-estar invade-nos quando se sai para a rua e se percorre o caminho para casa no silêncio da noite.
É em silêncio que se ouve música, se contempla a arte, se medita ou se pede a Deus. E sobretudo é em silêncio que se lêem livros como este.

Texto Miguel C. Martins

SOBRE O AUTOR

Marc de Smedt nasceu em 1946. Orientalista e autor de várias obras que cruzam os ensinamentos da filosofia oriental com a cultura ocidental foi durante onze anos aluno na prática de meditação zen com o mestre japonês Taisen Deshimaru, onde se iniciou também na filosofia budista. Estudioso das relações entre as diversas religiões, desde o budismo, confucionismo e hinduismo, mas também do cristianismo, judaísmo e islamismo, Marc de Smedt tornou-se numa figura de referência em França na divulgação de obras de filosofia orientais e do estudo paralelo das religiões. Foi um viajante incansável, na juventude, e jornalista em diversas publicações, De Smedt assinou artigos para a revista Planéte, Partir, Nouvelle Observateur, Magazine Litteraire entre outras. É actualmente editor de vários livros sobre filosofia oriental e budismo, dos quais assina quase sempre os prefácios, dirige uma colecção sobre estes temas na editora Albin Michel e é director da revista Nouvelles Clés dedicados a assuntos orientais. Paralelamente ao seu trabalho como ensaísta, publicou em 2001 o seu primeiro romance La legende de Thaluic onde narra o percurso iniciático de um jovem no seu processo de busca do nirvana. Para além do Elogio do Silêncio está também publicado em português a sua última obra: O Elogio do Bom-senso.