"O Sorriso Aos Pés
da Escada" e "Moloch", de Henry Miller, na
Colecção Mil Folhas
Por SARA GOMES
Pouco ou nada une os romances "O Sorriso
aos pés da Escada" (1948) e "Moloch"
(1924). O primeiro fala-nos de um palhaço, Augusto,
e transpira uma serenidade quase angélica. Já
o segundo, é um retrato tortuoso de um americano anti-semita,
Moloch, que vive (ou sobrevive) amargurado por a sua vida
estar longe de ser aquilo que sonhou.
Apesar das inúmeras diferenças
entre os dois livros, que nos levam a pensar que nunca poderiam
ser escritos pela mesma pessoa, ambos são do norte-americano
Henry Miller. Como se o escritor nos quisesse provar que um
homem tem vários rostos, todos eles possíveis,
mesmo que contraditórios.
Miller, que nasceu em Nova Iorque em 1891 e
morreu em 1980 em Pacific Palisades na Califórnia,
ficou conhecido por desafiar a sua época com a sua
escrita contestatária e libidinosa. "Trópico
de Câncer" (1934) e "Trópico de Capricórnio"
(1938) são alguns dos seus livros que mais chocaram
a sociedade tecnocrata do século XX.
O escritor, que chegou mesmo a ser acusado
de pornografia e cujos romances foram proibidos na Grã-Bretanha
e Estados Unidos até meados dos anos 60, acabaria por
ganhar renome mundial. A sua escrita vulcânica, a tender
para a descrição autobiográfica (tal
como Moloch também Miller foi funcionário de
uma companhia telegráfica), conquista pela sinceridade.
E também pela revolta.
"O Sorriso aos pés da Escada"
é, por isso, um "parênteses" na sua
criação literária. Escrito a pedido do
pintor Fernand Léger, a história do palhaço
Augusto é de um humanismo próximo da poesia.
Miller diz: "O palhaço é um poeta em acção."
E acrescenta: "Ele é a história que desempenha."
Miller considera "O Sorriso aos pés
da Escada" a sua obra mais "verdadeira". Talvez
porque, tal como revela no epílogo, "quando Augusto
se torna ele próprio, a vida começa - e não
só para Augusto: para toda a humanidade".
Longe do romantismo da história de um
palhaço que descobre a beleza da vida num sorriso,
Miller oferece-nos em "Moloch", uma das suas primeiras
obras, o retrato de um americano com inclinações
anti-semitas. A figura é incoerente: Dion Moloch é
pai, marido, amante e director de pessoal da Great American
Telegraphic Company. Por vezes, tem "impulsos caritativos",
noutras demonstra uma quase "ausência de sensibilidade".
Impossível de se amar ou odiar (porque
demasiado humano), Moloch vive na América dos anos
30, marcada pela chegada de milhares de judeus, que pareciam
adivinhar a Segunda Guerra Mundial. E é sem falsos
moralismos que Moloch (por detrás dele, Miller?) assume
que na América os judeus não eram bem-vindos.
Chama-os de "porcos" e diz que essa é a principal
razão para não gostar deles.
Mas de quem gosta realmente Moloch? E
quem é que gosta dele? Moloch descobrirá se
se quiser salvar. Assim como o palhaço Augusto também
descobrirá o sorriso que lhe trará a vida de
volta. Ou, quem sabe até, a imortalidade.
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