"Luz em Agosto", de William Faulkner, Amanhã na Colecção Mil Folhas
Por RAQUEL RIBEIRO
Terça-feira, 16 de Março de 2004

Cada livro de William Faulkner é um pequeno mosaico de um grande painel - a América. Um "puzzle". Em cada fragmento vivem-se os pequenos pesadelos das famílias americanas. Em cada estilhaço espelham-se as esperanças e as desilusões das gentes do Sul (lembram-se de Caddy Compson de "O Som e a Fúria"?), lá, onde o sol brilha mais forte, onde a poeira avermelhada se levanta quando um carro passa na estrada, onde as noites estreladas trazem o augúrio da tragédia, onde o céu azul oculta, inerte, o desencanto e o desamor.

Há qualquer coisa de clausura nesse campo aberto, vasto, enorme, a perder de vista, num Verão, sob a intensa luz do sol de Agosto. Há personagens aprisionadas no seus destinos, vagueando sem rumo, hirtas. Saberão o que as espera? Lena Grove está grávida, à procura do pai do filho que tem no ventre. Lucas Burch, chama-se. Anda há um mês na estrada. Quer chegar a Jefferson. "Eu e o Lucas não precisamos de juras nem de promessas. Deve ter acontecido algum imprevisto, ou então ele mandou-me mesmo recado, mas extraviou-se. Por isso, um dia resolvi meter pés ao caminho e não esperar mais", explica. Ele partiu (estará em Jefferson?), diz ela, à procura de outro trabalho, quem sabe se não a fugir do rebento.

Lucas Burch ou Byron Bunch? "Não me lembro de mais ninguém chamado Burch, a não ser eu, e o meu nome é Bunch", diz Byron. "O tom é sereno, mas Byron já está apaixonado, embora ainda não o saiba. Não olha para ela, mas sente o olhar dela, circunspecto e insistente, cravado no seu rosto, na sua boca."

Em frente a Byron, o reverendo Hightower ainda não pensa em "amor". Escuta-o atentamente ("Não me refiro ao fogo"), pesado, com os braços pousados nos braços da cadeira ("Eles? Estava convencido de que Miss Burden vivia lá sozinha"), circunspecto e interessado ("Então o Brown é o homem que ela procura. O marido dela é contrabandista de uísque. Ora esta"). A esta altura, a angústia de Byron era poder voltar ao "ontem" e saber que "ontem" já era "hoje": "Hoje só tenho pensado como tudo seria fácil se eu pudesse voltar ao dia de ontem e não ter mais nada a preocupar-me além do que tinha nessa altura."

Há ainda os "dois fulanos chamados Joe": Joe Christmas e Joe Brown. Christmas é um "forasteiro de roupas sujas e citadinas, rosto moreno e insolente e aquele ar de desdém, frio e silencioso". No princípio, o olhar do leitor responde ao seu próprio desdém. Mais tarde, o peito aperta-se, contorce-se, quando se descobre que "ele não tem culpa de ser o que é". Negro, mulato, meio-negro, sangue negro - "pensava que eras italiano". Podia ser. É só depois, diante do crime e dos castigos, que o peito se abre em compaixão: "Não. Ceder agora seria negar os trinta anos que vivi para ser aquilo que escolhi." O que era isso? "A vida dele, apesar de toda a sua anónima promiscuidade, não deixara de ser convencional, como geralmente o são as vidas de pecado saudáveis e normais."

Vidas de pecado - o reverendo no púlpito exaltando os cavalos a galope; Brown, bêbado, impedindo o camponês de ver a cabeça de Miss Burden separada do corpo. "Era um derradeiro lampejo do Verão agonizante que teimava em não morrer face à chegada sem aviso do Outono, nesse dealbar da meia morte." Mas nessa gente dessa terra perdida, Jefferson, Mississipi, "subsiste ainda um pouco de honra, um pouco de orgulho, um pouco de vida".

 
 
       

    
   

 
William Faulkner