"O Jogador", de Fiódor Dostoiévski, Amanhã na Colecção Mil Folhas
Por RAQUEL RIBEIRO
Terça-feira, 09 de Março de 2004
Quando Aleksei Ivánovitch entra pela primeira vez numa sala de jogos, os rostos ávidos dos jogadores causam-lhe repugnância: "Tudo aquilo me parecia sujo, moralmente sujo e repulsivo." Está ali para ganhar, para multiplicar dez míseras moedas e transformá-las em 160 florins. Está ali para jogar na roleta pelo amor de uma mulher.
Comecemos pelo princípio: Aleksei, 25 anos, é perceptor de uma família abastada (mas quase falida) de São Petersburgo. Está em Ruletemburgo (espécie de Las Vegas de finais do séc. XIX), na Alemanha, com o general, a amante dele (Mlle. Blanche), um amigo inglês (Mr. Astley), um não-tão-amigo francês (De Grillet) e a sua amada (Polina). Foram todos para jogar na roleta. E estão todos à espera de um telegrama que confirme a morte da matriarca, a avó inválida e milionária que ficara na Rússia.
Mas há surpresas - a avó não só não morreu, como, ironicamente, vem a Ruletemburgo para provar que "está viva e rabiando". "Esta velha endoideceu", comenta, rangendo os dentes, De Grillet, também de olho na herança. "Não te esqueças que não te darei um centavo", diz a senhora ao general.
Aleksei caíra em desgraça na família: por amor a Polina, fizera uma criancice com um barão alemão e o general despediu-o. A avó acolhe-o com gosto e pede-lhe que lhe mostre a sala de jogos. "O 'trente et quarante' não despertou praticamente a sua curiosidade; interessou-se mais pela roleta e pelo rodar da bolinha." Aleksei, ainda inexperiente, explica-lhe as regras e como se fazem as apostas. A velha senhora delira. "Também eu era jogador. Senti-o naquele instante. Tremiam-me as mãos e as pernas e o sangue afluiu-me à cabeça", pensou, quando viu o dinheiro multiplicar-se na mesa. O fascínio da roleta estava já em Aleksei: "Estou completamente convencido de que, ao começar a jogar por minha conta, ganharei com toda a certeza." Mas não tinha dinheiro.
Quando a avó perde tudo, a família arruina-se e Mlle Blanche abandona o general - que lhe interessa um homem falido? É aqui que a obra muda - a meio da história, vislumbra-se já o verdadeiro Dostoiévski (1821-1881), também ele jogador compulsivo, também ele obcecado, viciado na roleta. Aleksei é um espelho parco do autor russo, um alter-ego - nesta altura (cerca de 1860), Dostoiévski é um homem saído de um campo de trabalhos na Sibéria, desvastado pela morte da mulher e do irmão - com uma mórbida fixação pelo jogo.
"Às vezes parece-me que continuo a girar nesse torvelinho, que a tormenta vai levantar-se novamente de um momento para o outro, arrastando-me outra vez com as suas asas, que, de novo, me vejo fora da ordem e do sentimento da medida e que rodo, rodo, rodo..." Torna-se um jogador - febril, doentio, com um "prazer terrível" e a ilusória crença de que "amanhã, amanhã tudo isto acabará". Será? |