"O Processo", de Franz Kafka, na Colecção Mil Folhas
Por RAQUEL RIBEIRO

Há um homem, Josef K., gerente de banco, que numa manhã é preso (sem ir para a cadeia) e acusado (sem saber de quê). Chama-se K. como poderia chamar-se outra coisa qualquer - A., M., Z.. Não importa: a inicial é apenas uma pista para nos perdermos nos meandros da justiça, nos quilos de processos que se empilham até ao tecto, nas portas que se abrem, nas portas que se fecham e que, depois de percorridos enormes e austeros corredores, não vão dar a sítio nenhum.

Estamos, então, com K. vagueando algures por esse processo que não sabemos qual é ou por que existe. E, como em qualquer romance do absurdo, estamos novamente fechados, mas desta vez não é num quarto, nem nos transformámos em homem-mosca, como em "A Metamorfose". Desta vez, estamos nos tribunais, nas repartições de justiça, em casas de advogados de defesa, em quartos de pensões, fugindo dos tentáculos violentos do poder e da lei, a qual (segundo K.) o acusado desconhece, na totalidade.

No início, estamos ainda a enfrentar, curiosos, essa justiça burocrática. Passa-se de uma repartição para outra, por salas imensas e obscuras onde centenas de pessoas estão sentadas com a cara enterrada em si mesmas (cara de quem lá está há dias) já sem força para lutar contra os processos que lhes foram instaurados. Aí, K. sobreviveu "movido pelo desejo de se certificar se o interior daquela justiça era tão repulsivo quanto o exterior".

Até que descobre, após o espectáculo circense do seu próprio interrogatório, que "faz parte deste género de justiça que uma pessoa seja não só condenada inocentemente, mas também desconhecendo a lei".

Agora ele já sabe ao que vai - como lutar contra essa entidade desconhecida e invisível chamada poder? Bem, há sempre um encarregado de informações que "presta aos interessados que aqui esperam todas as informações de que eles necessitam; e olhe que presta bastantes, pois a nossa justiça não é muito conhecida entre a população". Deste encarregado com quem se tiram as dúvidas, passa-se para uma repartição em que se preenchem requerimentos ("já entreguei o meu há mais de um mês e ainda não tive resposta"), queixas, procuram-se advogados de defesa. K. procura o dele, que já sabe tudo sobre o seu processo - como? K. sente-se mal, quer sair dali, está sufocado pelo terror. E já não quer saber. Quer acordar outra vez naquele primeiro dia e trabalhar, simplesmente, no banco, como fizera sempre - e provar que isto não passa, talvez, de uma fábula, talvez de um sonho que inventaram para lhe provar que é melhor viver assim, na ignorância da justiça que o domina, do que numa sociedade em que tudo se sabe.


       

    
   

 
Franz Kafka
 
 

Kafka nasceu a 3 de Julho de 1883 em Praga, então pertencente ao império austrohúngaro, e morreu, de tuberculose, a 3 de Junho de 1924, a um mês de fazer 41 anos, perto de Viena.