"A Madona", de Natália Correia, na Colecção Mil Folhas

De um lado há a supremacia masculina num mundo rural - a aldeia montanhosa de Briandos, onde as vinhas e a rudeza dos corpos parecem nos remeter às bacantes -, do outro está a efervescência urbana de Paris, com a agitação juvenil, a contestação à guerra e o existencialismo próprio dos anos sessenta.

Suspensa entre estes dois universos está Branca, a narradora de "A Madona" (1968), de Natália Correia (1923-1993). É uma jovem "virgem da montanha" que aproveita a morte do pai - agonizante nos braços da prostituta local, a Carriça - para trocar a sua limitada vida campestre por um caminho de liberdade. Há nesta obra um sentido muito forte de desopressão, não só do ponto de vista sexual, mas também de consciência do próprio corpo e de questionamento dos lugares sociais destinados à mulher.

Branca possui uma beleza própria da estatuária helénica - os mitos clássicos, aliás, funcionam como intertexto claro nesta obra. E é esse encanto que entrega ao primeiro homem que lhe aparece em Paris, Miguel. Um impulso que não só vinga a humilhação da mãe, um ser doméstico feito para parir e calar, mas também sela uma iniciação sexual ao sabor dos ventos de liberação que sopravam na altura. A mãe vaticina: "Tua hás-de ser leviana porque antes isso do que ser uma mulher de quem não se gosta." E a filha, neste texto barroco, conclui: "Eu estava disposta a pôr na fronte do primeiro que me agradasse para dourar a facilidade da minha entrega."

A consciência do próprio corpo, contudo, não é um caminho trilhado sem a companhia da tristeza e da insatisfação. Aquilo que seria o experimentar de tudo e de todas as maneiras é também a certeza de "emoções contraditórias". E ainda de um certo embaraço na "entrega ao prazer físico". Não basta partir a louça para romper o silêncio a que as mulheres estiveram votadas. O percurso pode ser mais doloroso do que se pensa, porque filha e mãe estão unidas "por um cordão misterioso". Esteja em Paris ou em Londres, Branca trará sempre no corpo marcas de um sistema patriarcal e agrário. E, por isso, os espaços da narrativa são contrastantes, oscilando entre Briandos e as capitais europeias.

Se a mãe gostava de exibir um vestido vermelho berrante em pleno funeral do marido - algo que Branca impede com um sonífero, um comprimido providencial para evitar o falatório na vila -, a filha retoma, em nome da linhagem feminina, o plano de revolucionar os lugares fixos e anódinos que a sociedade destinou secularmente às mulheres. Só que o desejo de choque e mudança não é necessariamente um atalho para a felicidade. " - Oh, Miguel, porque havemos de ser tão infelizes? / - Porque nos amamos e ambos tememos que o outro não seja um deus", confidenciam os amantes, na certeza de que a procura por algo novo permanecerá.

"A Madona" é um dos três livros de ficção da escritora açoriana - a par com "Anoiteceu no Bairro" (1946) e "A Ilha de Circe" (1983) -, que teve ainda uma produção prolífera na área da poesia, do teatro, do ensaio e da política.

 
 
      “Sou uma impudência a mesa posta/ de um verso onde possa escrever./ Ó subalimentados do sonho! a poesia fez-se para comer.”

    
   

Natália Correia
Natural da Ilha de São Miguel, Açores, Natália de Oliveira Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923. Morreu em Lisboa a 16 de Março de 1993. “A Madona” é um dos seus poucos romances e foi publicado em 1968.