Três contos para começar...

Eça de Queiroz, Jorge de Sena e Alexandre O'Neill são três nomes cimeiros da literatura portuguesa. Aqui ficam excertos de três contos da antologia “Gloria in Excelsis – Contos Portugueses de Natal”, que sairá a 17 de Dezembro

“Nesse tempo Jesus se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do largo de Tiberíade: – mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Isaacar.

Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum decurião romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga.”

Eça de Queiroz, “O Suave Milagre”

 

“Era como se a noite, de negra, fosse apenas o estrondear das vagas invisíveis no sopé da escarpa e a aragem fria que salina sentia na boca e nas narinas e, cortante, nas orelhas e na inserção dos caracóis na testa. Envolto no manto de lã, nada mais sentia; e os olhos, absortamente fitos na distância alta, além do parapeito, opaca e sem horizonte, não perscrutavam, apenas alongavam por ela dentro imagens que lhe enchiam a memória vaga.

– Marco Semprónio...

Voltou-se e só então ouviu, por sob o estrondo das vagas invisíveis, os passos arquejantes que haviam precedido o chamamento. No clarão indistinto que difuso vinha de entre as colunas do palácio, reconheceu a barba de Quintílio Vero; imagens da memória, refluindo também para os seus membros, deram-lhe a lembrança da barca, dos exercícios de natação pelas grutas, dos remos batendo na água transparente, e de um cadáver de escravo emanando de si, no azul do fundo, uma nuvem vermelha que se dissipava.

– Que é?”

Jorge de Sena, “A Noite Que Fora de Natal”

 

“A ideia de há muito que o andava a desassossegar. Depois dos primeiros ensaios de auto-apoucamento, Valério conseguiu um primeiro grande resultado: meter-se todo, todinho, numa das pernas (por sinal, a esquerda) do par de calças de sarja que comprara nas Confecções Nilo por trezentos convidativos escudos. Com voz-de-dentro-de-calça chamou a mulher:

– Ó Quinhas, anda ver!

Quinhas levou um susto ao dar com uma perna de calça sustentando-se em pé sem, aparentemente, homem lá dentro. Logo se refez para fingir que não era capaz de o encontrar:

– Mas onde é que se teria metido o meu Lérinho!

– Aqui, sua estúpida!, desabafou-abafou a voz de Valério.

Quinhas continuava a brincadeirinha apalpando a perna vazia e bichanando:

– Lèrinho! Lèrinho!

Quando Valério, por fim, se libertou da perna da calça e retomou o seu (natural) ascendente, trocaram prazenteiros insultos como só os casais muito unidos sabem trocar.

Quinhas seguira os exercícios de auto-apoucamento de Valério. Este começara a enovelar-se pelos cantos da casa: passara de seguida aos gavetões da cómoda e acabara por ser encontrado numa das gavetas da mesa da cozinha.”

Alexandre O'Neill, Exercícios de Auto-Apoucamento (com vista ao próximo Natal)

 

 

     

    
   

 
Vasco Graça Moura