"Bouvard e Pécuchet", de Gustave Flaubert, na Colecção Mil Folhas
Por Raquel Ribeiro
Terça-feira, 09 de Dezembro de 2003

Dois homens apareceram. "Um vinha da Bastilha, outro do Jardim Botânico." "Para limpar a testa", continua Flaubert, "tiraram os chapéus; e o baixinho viu escrito no chapéu do vizinho 'Bouvard', enquanto este distinguia facilmente no boné do sujeito de sobrecasaca a palavra 'Pécuchet'. Olha! - disse ele - tivemos a mesma ideia, de mandar gravar os nossos nomes nos chapéus." É que podiam roubar-lhos no escritório.

E assim nasceu uma amizade - cheia de coincidências, de disparates, de solidão- entre Bouvard ("alto, vestido de algodão, chapéu caído para trás, colete desabotoado e gravata na mão") e Pécuchet ("baixo, cujo corpo lhe desaparecia numa sobrecasaca castanha").

Bouvard recebe uma choruda herança de um tio - 140 mil francos com os quais não sabe o que fazer. E se fosse viver para o campo, deixar o terrível trabalho de copista, arregaçar as mangas, podar roseiras, apalpar a terra, plantar túlipas? E se Pécuchet fosse com ele?

Assim foi. Levaram meses até encontrar a casa certa - "fugiam da vizinhança, e contudo temiam a solidão". Ou era junto de fábricas ou longe dos lugarejos, demasiado cara ou barata, o vento do mar prejudicial para a saúde, o interior demasiado seco. Seria assombrada por fantasmas? Haveria um passado de crimes?

Lá se decidiram. A herança era grande e podiam dar-se ao luxo de se dedicarem aos trabalhos do campo. Plantas, legumes, frutas. Mas não foram bafejados pela sorte. Tudo murchou. Estudaram agronomia, horticultura, jardinagem, arboricultura. Fabricar conservas. Mas a produção era zero e o défice cada vez maior. Desistiram. "É talvez por não sabermos química!"

E estudaram química. Descontentes com os resultados, estudaram fisiologia, medicina, astronomia. "Bem gostaria de saber como se faz o universo!", disse Pécuchet. Geologia, mas "a nomenclatura irritava-os", escreve Flaubert. Arqueologia, e roubaram sarcófagos e cubas, a casa transformou-se num museu de pedras soltas. "Donde concluíram que os factos exteriores não são tudo. É preciso completá-los com a psicologia. Sem a imaginação, a História é imperfeita. - Vamos mandar vir alguns romances históricos!"

Walter Scott, Alexandre Dumas, Corneille, Racine, Voltaire, Balzac, George Sand. Quiseram saber tudo sobre o amor, o sujeito filosófico, a política, o socialismo, o belo, a estética, o sublime, a escrita, Deus, a Bíblia, a educação. Apaixonaram-se, mas as mulheres revoltavam-nos. Quiseram saber tudo sobre tudo - "mas não tardaram a aborrecer-se, porque os seus espíritos precisavam de um trabalho, as suas vidas de um objectivo", escreve o autor.

Flaubert explicou um dia, numa carta a Adèle Perrot, que "Bouvard e Pécuchet" seria "uma enciclopédia da estupidez humana - verá que o sujeito é ilimitado". Mas o autor de "Madame Bovary" não chegou a terminar esta obra, publicada postumamente. Metódico e disciplinado, deixou um plano escrito sobre como deveria acabar o romance. São essas explicações que vêm no final do livro, três páginas de tópicos sobre os destinos dos dois amigos. Aí se verá que a obra é fascinante - não é só um retrato da superficialidade dos conhecimentos, mas uma dura denúncia das banalidades da vida intelectual francesa. Numa carta a Ivan Turgueniev, em Agosto de 1874, Flaubert escreveu: "Parece-me que vou embarcar numa viagem enorme por regiões desconhecidas e de que não voltarei mais." Era mesmo verdade.


      “O estilo está antes sob as palavras do que nelas.”

    
   

 
Gustave Flaubert
 
 
Gustave Flaubert nasceu em 1821, em Rouen, França. Morreu em Croisset,
1880. “Bouvard e Pécuchet”, romance póstumo e incompleto, foi publicado em 1881.