Amor e resistência
Por Maria José Oliveira
Quando Nadine Gordimer
(1923) leva a família de
Sonny, protagonista de "A História de Meu Filho",
a mudar-se ilegalmente para uma casa na "cidade branca",
Joanesburgo, naquele que é mais um acto de retaliação
pelos decretos racistas, o leitor vê abrirem-se-lhe
as portas da realidade mais absurda. A cidade é,
aqui, a impressão digital de um país, África
do Sul. Que escavou fronteiras, edificou muros invisíveis
e prodigalizou a segregação racial. Até meados
da década de 90, quando as reformas lançadas
pelo Presidente da República, Frederik de Klerk,
resultaram na abolição do "apartheid".
No romance de Gordimer, publicado
em 1990, a capital sul-africana, onde decorre a acção, é um lugar trágico.
Ali, como em muitas outras cidades, a comunidade negra
só podia "entrar" aos sábados, durante a
manhã, regressando depois aos "guetos" para onde
foi despejada. Lá longe, muito depois da savana
que separava a minoria branca da maioria silenciosa, a
negra.
Com excepção das manhãs de sábado,
as famílias das zonas prescritas já sabiam
de cor os regulamentos: não podiam passear nos parques,
entrar nas lojas, visitar as bibliotecas, frequentar as
escolas, ir ao cinema. Era a sua cor de pele que determinava
a proscrição: no nascimento, na procriação,
no trabalho, no lazer e na morte.
As leis impostas pela sociedade colonial
postulavam os locais de habitação, as escolas, os ofícios,
os (fictícios) direitos cívicos e políticos. "Os
'guetos' dos negros eram acampamentos militares e os cães
da polícia guiados pela trela por homens armados
(...), as sedes dos sindicatos e das organizações
militantes da igreja eram regularmente invadidas por batidas
da polícia. Algumas explodiam misteriosamente ou
eram queimadas", escreve Gordimer.
Houve sempre resistência. Mesmo com as famílias
fragmentadas, a clandestinidade forçada, os nomes
de código, as actividades secretas e a luta armada.
Mesmo com os julgamentos sumários, as intervenções
violentas da polícia em protestos pacíficos,
as detenções e as frequentes visões
de homens com correntes nos tornozelos (resquícios
do passado de escravatura).
Crónica familiar e a resistência
política
Nadine Gordimer, Prémio Nobel da
Literatura em 1991, já o havia feito em outros livros
- disparar a sangue-frio a cruel realidade - e "A História
de Meu Filho" não é excepção.
As narrativas (na verdade, o livro compõe-se de
duas histórias narradas em alternância, sendo
uma delas contada, em tom diarístico, pelo filho
adolescente de Sonny, Will) penetram na esfera íntima
do activista político (Sonny) para encenar o drama
da sociedade sul-africana nos finais da década de
80.
Sonny é uma figura popular da resistência
negra, várias vezes preso por promover boicotes
e manifestações ilegais, casado com Aila,
doméstica, e pai de dois filhos adolescentes. A
crónica familiar tecida por Nadine Gordimer envolve
a relação adúltera de Sonny com Hannah,
activista de uma organização internacional
dos direitos humanos, a mescla de amor-ódio de Will
pelo pai e a surpreendente adesão de Baby, filha
mais velha de Sonny, a um movimento guerrilheiro. Mais
para o final do romance, num momento de reviravolta narrativa
(apanágio, aliás, da prosa de Gordimer), é Aila
quem se transforma no epicentro da narrativa quando revela
a sua associação à guerrilha armada.
São as ligações entre os afectos e
as acções de resistência política
(mais os consequentes dilemas, que, por vezes, esta relação
comporta) que servem para Gordimer lançar um olhar
telescópico sobre a sociedade contemporânea
sul-africana.
O núcleo familiar de "A História de Meu
Filho" não representa apenas os símbolos
da luta contra a discriminação racial, eivada
de brutalidade e tirania, e do sofrimento quotidiano de
uma comunidade segregada no seu próprio país.
Neste romance de Nadine Gordimer, actualmente com 80 anos,
estão também presentes as fragilidades dos
movimentos anti-"apartheid", nomeadamente as cisões
internas, as dissidências e as falhas na confiança
mútua. A ficção, defendeu um dia a
escritora, é um lugar de liberdade e "nunca deve
pertencer a nenhum sistema".