O Inverno do comissário Montalbano

A nortada gélida e a agonia das meias estações dão cabo do juízo a Salvo Montalbano. E o quebra-cabeças policial à volta de um burlão desaparecido também. Camilleri regressa com o seu comissário, um pouco mais velho, mais céptico e menos bem-disposto. Mas também com um inquérito policial que esconde uma extraordinária história de amor e solidão.

Por Eduardo Dâmaso

Neste “O Cheiro da Noite”, aparece um Salvo Montalbano atípico. O Inverno antecipado perturba a placidez siciliana do comissário vivida numa casa virada para a praia e para o mar. A idade vai dando cabo de uma proverbial boa disposição e agravando as incertezas de um amor demasiado vivido à distância com a sua Lívia, apesar de tudo, omnipresente. Desta vez, uma desafortunada camisola de malha, oferecida com toda ternura que uma mulher pode depositar num objecto trabalhado ou escolhido como se fosse a coisa mais importante do mundo, condensa o simbolismo de um amor vulnerabilizado pelos pequenos sinais que uma vida solitária vai dando.

O amor sério de Montalbano a Lívia é combatido pela sensualidade descrita à boa maneira italiana, tórrida e perfumada, através de uma personagem lateral, Michela, a bomba que o comissário não se atreve a meter dentro de sua casa, que irrompe como um vulcão de erotismo. O chamamento da estabilidade matrimonial, representado na preparação do seu adjunto Mimí Augello para o casamento, é um fio que envolve todas as dúvidas geradas pelo humor instável do comissário, ainda por cima atacado por um velho ódio de alguém que o tenta envolver numa história sórdida relacionada com a adopção de uma criança. Canalhices à parte, porque a maldade é coisa que faz parte do catálogo de misérias quotidianas com que um polícia tem de lidar, tudo o mais dá uma estranha mistura de angústia existencial em Montalbano, que se entrega a reflexões sobre a vida que se escoa a um ritmo alucinante e se alimenta de verbos no infinito: nascer, comer, estudar, produzir, fazer “zapping”, comprar, vender e outros mais escatológicos que deixam para trás os tempos do pensar, meditar, escutar e, por que não?, vadiar, dormitar, divagar. Uma época, afinal, sem espaço para fatos de meia estação, com o Inverno a galgar por cima do Outono e o Verão a extinguir a Primavera.

Um quebra-cabeças policial
A doença da nostalgia atravessa os estados de alma do comissário, que, ainda por cima, desta vez está a braços com um verdadeiro quebra-cabeças policial. Embrulhado nas confusões habituais que vivem todos os polícias que respiram a sua própria autonomia, que escapam pela malha fina do mando arrevezado dos burocratas, dos chefes odiados pela suspeita de concubinato com todo o tipo de poderes — o que na Sícilia, em regra, é fatal para os subalternos —, Montalbano não tem a titularidade do caso mas não resiste a seguir as pistas que a sua própria curiosidade lhe vai dando.

A história desenrola-se, suave na aparência inicial, pelo espaço de um conto do vigário engendrado por um contabilista finório cheio de manha na manipulação dos números, das maisvalias, dos juros, da velha ilusão do dinheiro multiplicado por conta de um malabarismo financeiro. As poupanças de tanta gente de Vigàta — pobres e ricos, honrados e mafiosos — desaparecem num ápice, tal como o próprio manhoso. Conjecturas de uma viagem para o sol das Caraíbas à conta dos otários andam para cá e para lá até que as coincidências começam a aparecer.

Montalbano vai desenrolando as pontas e chega à conclusão que também um companheiro de tramóia do espertalhaço que sacou o dinheiro ao povo desapareceu. Pelo acaso ou pela intuição que todos os bons polícias têm ao não desvalorizar por completo o que dizem loucos e alucinados, Montalbano descobre através de Tommasino, um velho excêntrico, que a noite muda de cheiro pela madrugada e também que a viagem para as Caraíbas, afinal, foi apenas um mergulho fatal nas águas do mar siciliano. Os pequenos detalhes são sempre terríveis nas investigações policiais.

Aí, já as coincidências são superadas pelas especulações do rumorejar popular que se aproximam dos discursos oficiais das autoridades. No inquérito, que não é de Montalbano, aparece um bicho careta a aludir à hipótese do costume por aquelas bandas: o contabilista sacou as massas de algum mafioso e acabou no fundo do mar. A Mafia também tem as costas largas.

A história é uma caricatura às euforias bolsistas, aos discursos de circunstância que cobrem as primeiras versões sobre crimes que os responsáveis não sabem desvendar, às incompetências que se escondem debaixo dos fatos aprumados e das gravatas esticadas. É um regresso do humor corrosivo e da manha siciliana de Andrea Camilleri num dos seus melhores livros. Mas também é uma terrível história de solidão e amor.

Planando pela superfície da história e da investigação Camilleri vai-nos dando pequenos sinais imperceptíveis de um outro drama silencioso que corre por uma daquelas vidas que se movimenta nas entrelinhas da solidão. A senhorita Mariastella, ajudante do burlão, dedicada secretária ou mãe extremosa, que se recusa a acreditar no embuste e mantém o escritório aberto na esperança de repor a honra do seu patrão aos olhos dos conterrâneos furiosos, é a grande personagem que nos dá um final que Shakespeare provavelmente não desdenharia no seu corre-corre pelos caminhos mais ínvios da alma humana.

    
   

 
Andrea Camilleri
 
  Andrea Camilleri nasceu em Porto Empedocle, na Sicília, Itália, em 1925. “O Cheiro da Noite” foi publicado em 2001.
   
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