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Um Livro com Raça!
Em 1997, um júri de pesos-pesados (Agustina Bessa-Luís,
Nuno Júdice, Fernando J. B. Martinho, José Manuel
Mendes e Casimiro de Brito), atribuiu o Grande Prémio
Literário RTP ao romance “Nação Crioula”.
Na declaração de voto, Agustina, com a provocação
inteligente com que normalmente nos brinda, asseverou: “Temos ‘escritor
de raça'.” Para que não fosse lida à letra,
a romancista lembrou que a expressão era de Teixeira
de Pascoaes. E acrescentou: “Escritor de raça é aquele
que pode sustentar o brio e a dignidade das letras do país
onde escreve.”
José Eduardo Agualusa não era, à época,
propriamente um desconhecido. Mas este prémio e, sobretudo, “Nação
Crioula” colocavam o jovem escritor entre os nomes a seguir
com atenção na paisagem das letras portuguesas.
Em 1868, Eça de Queirós criou, primeiro em
grupo, mais tarde sozinho, uma das personagens mais modernas
e fascinantes da literatura portuguesa de sempre — Fradique
Mendes. Antes de morrer, a obra viria a ser publicada postumamente,
Eça começou a gizar “A Correspondência
de Fradique Mendes”, que, em folhetins, apareceu na “Gazeta
de Notícias”, do Rio de Janeiro.
Parece coisa à Jorge Luis Borges? Não parece, é.
José Eduardo Agualusa, consciente da modernidade da
construção queirosiana, aceitou o desafio proposto
por Eça. Como “invenção literária” deu-lhe
uma outra vida, isto é, “ressuscitou” Fradique. Volta
a levá-lo a África por onde, já sabíamos
pelas cartas de Eça, tinha viajado. O que não
imaginávamos é que tomara consciência
do que Eça tinha deixado escapar no seu romance de
estreia, “O Crime do Padre Amaro”: “Tudo se ilude e se evita,
menos o amor.”
Não contente com estas “ficções”, descobriu
a existência de uma tal D. Ana Ubertalis, que está na
origem de Ana Olímpia Vaz de Caminha. As fronteiras
entre literatura e vida, tão discutidas por Eça — com
o projecto naturalista, primeiro, realista depois — tornam-se
também elas um núcleo central de “Nação
Crioula”: “Não, não faço literatura”,
escreve Fradique a Eça. “E também não
tenciono, nem agora nem nunca, escrever memórias.” Na
distância que vai entre a vida e a literatura, Fradique
não esconde a sua inclinação: “Prefiro
a Vida.”
Ana Olímpia Vaz de Caminha nasceu escrava em casa
de um comerciante baiano, e tornou-se uma das maiores fortunas
de Luanda por via... da escravatura. O destino trocar-lhe-á as
voltas e, já depois de se apaixonar por Fradique,
cai nas mãos de uma outra dona de escravos, a mulher
mais feia de Luanda, a “Boca Maldita”, ou Gabriela Santamarinha.
O irmão do seu primeiro marido, Jesuíno Vaz
de Caminha, rouba-lhe a fortuna, vende-a a Gabriela para
servir como escrava.
Um romance de ideias
Cada
carta — Agualusa retoma, sem cair no pastiche, a forma
espistolográfica de Eça —, é uma boneca
russa “matrioska”, que conta uma história (há estórias
tão deliciosas no livro, contadas por personagens
tão bem conseguidas e desenhadas, que nunca mais as
esqueceremos), da qual vai saindo outra e outra. À medida
que Fradique vai escrevendo a Madame Jouarre, a Eça,
ou Ana Olímpia, abre-se uma ferida nas nossas consciências
sobre o que é a escravatura. Algo que julgávamos
desaparecido na nossa aldeia global mas que não foi
ainda erradicado. O navio negreiro “Nação Crioula” hasteará,
agora, que pavilhão?
No cerne (até na ideia de “misturar” ideias, visões
do mundo, está a crioulagem como conceito), emerge
a imensa nação crioula, fruto do cruzamento
de sangues, civilizações, nações,
continentes. Fradique é o europeu senhor de convicções,
mas aberto ao mundo; Ana Olímpia é negra: dos
dois nascerá Sophia, e quando isso acontece já Ana
Olímpia se sente “brasileira”.
“Nação Crioula” não é um livro
de tese, embora seja um romance de ideias. José Eduardo
Agualusa, com uma ironia assaz mordaz e uma ambiguidade de
sentidos, constrói uma obra questionadora, aberta
portanto a várias leituras, e com poucas respostas,
muito poucas respostas...
Todos os personagens acabam “vencidos da vida”. Sem se cumprir.
Não são máscaras (ou se o são é porque
transportam consigo o desengano e a desistência). Uns
estão mais próximos da vidinha. Ana Olímpia
acabará casada porque... sim: “Estou na vida como
numa varanda. Vejo na rua passarem as pessoas com as suas
tragédias íntimas. Vejo-as nascer e morrer.
Nestas terras ácidas a natureza conspira contra nós.”
Fradique? “Não nos pertence.” Ana Olímpia “dixit”. “A
nós que o amámos [não nos pertence],
da mesma forma que o céu não pertence às
aves”, diz na carta a Eça datada de Agosto de 1900,
a última do romance.
O espírito satânico que era Fradique (o de
Eça é mais cínico do que o de Agualusa),
esse, já tinha batido com a porta ao amigo José Maria
(apesar de com ele ter caído no bacalhau à Mouraria).
Não escreverá uma linha para a “Revista de
Portugal”, sobre a situação de Portugal em África.
Portugal, sentencia Fradique, não está montado
em África: está depositado. Defende, ironicamente
(?), que o rei, a corte, os deputados assentem arraiais em
Angola: com “todos os ministérios e, naturalmente,
os pastéis de Belém.” Antes de fechar os olhos,
assevera: os portugueses deixam-se “descivilizar pelos povos
locais”.
“Nação Crioula” é um
romance bem urdido. Enxuto, sem bordados. Comovente, sem
pieguices. “Com um perigoso
sentido de humor, e um não menos afiado espaço
crítico.” Com raça!
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