"O quintal da minha casa ocupou o mundo"

Por Carlos Câmara Leme

“Nação Crioula” era o nome do último barco negreiro que riscou os mares, entre as costas de Angola e as do Brasil. Não é uma invenção literária, como foi Fradique Mendes: primeiro na pena de Eça de Queirós, um século depois no portátil de José Eduardo Agualusa. Do cruzamento dos mundos — por via ou não do imperialismo... —, nasceu “Nação Crioula”. Fradique regressou outra vez. O que Eça se divertirá! De novo, “o vate da modernidade” teve sorte!

A pouca horas de voar para o Brasil, onde vai participar em mais uma onda de debates e conferências, José Eduardo Agualusa tem o tempo contado. Para mais, está a braços com obras na sua nova casa e teme o pior: ficar durante quinze dias sem saber como vão as obras. Desde que se conhece que o destino tem vindo a conjugar-se no plural: destinos. Angola (onde nasceu, em 1960, no Huambo, no planalto central), Portugal (em Lisboa. onde estudou Agronomia e Silvicultura e se tornou jornalista “free-lancer”) e Brasil (onde escreveu um livro — “Nação Crioula” — e onde, actualmente, há mais Agualusas do que em África e na Europa). Aos 43 anos, está a escrever mais romance. Um corte, uma ruptura (uma ferida para voltar a sarar a carne?) com o que até agora escreveu.

PÚBLICO — Num debate na Feira do Livro de Viana do Castelo, no Verão, confessou uma admiração, quase sem limites, por Eça de Queirós. “Nação Crioula” tem o subtítulo — “A Correspondência Secreta de Fradique Mendes”. Como é que surgiu este livro?
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA — A minha mãe era professora de Português e isso explica muita coisa. Mas é verdade. Dei primeiro com “Os Maias”. Enquanto não li o Eça todo não descansei.

Incluindo “A Correspondência de Fradique Mendes”?
Sim, e achei uma construção deliciosa. Mas só muito mais tarde — no liceu teria para aí uns 15, 16 anos — é que me dei conta da multiplicidade de ideias e leituras que “A Correspondência...” tem. Lembro-me que comprei o livro num sebo [alfarrabista no Brasil] e fui para a praia lê-lo. Acontece que, nessa altura, estava muito interessado em escrever um romance sobre uma figura feminina do século XIX, que existiu na realidade, muito pouco conhecida: D. Ana Ubertalis. Acabei juntando as duas coisas. Depois, foi um livro relativamente fácil de escrever. Ganhei uma bolsa de criação literária do Centro Nacional de Cultura e fui para o Nordeste brasileiro.

É verdade que “a pressão” formal das cartas de “A Correspondência...” é muito grande. Mas podia ter optado por outra forma. Por quê a forma epistolar?
Primeiro, era um desafio grande, achava à partida muito difícil. Depois, a lógica interna de um romance assim construído faz com que o leitor, à medida que vai lendo, sabe tanto como o narrador. Pareceu-me muito interessante essa maneira de jogar com o tempo, com os lugares...

Se aparentemente o modelo é o epistolar, na verdade...
É muito diferente. O meu romance está estruturado como um romance clássico...

Em que a escrita — como se existisse uma espécie de “verbos” dos lugares por onde vai andando — se vai adaptando a cada tempo, a cada lugar.
É curioso... Sabe que a edição do livro em inglês marca, através de separadores antes das cartas, os lugares de onde vão sendo escritas? Bom, costumo dizer que “o tempo dilata com o calor”, mas nunca tinha pensado nisso até agora. É possível...

Além da forma epistolar, Fradique Mendes não é uma personagem qualquer do “baú” de Eça de Queirós. O que é lhe interessou nele?
Eu precisava, para escrever “Nação Crioula” de alguém como Fradique! Que fosse, e ele é, um europeu — com toda a carga de preconceitos que tem — e, simultaneamente, um homem aberto ao outro. Ao diferente. A verdade é que, apesar de todos os seus defeitos, Fradique Mendes é isso! O Fradique é muito mais aberto do que o Eça de Queirós! É um tipo que se interessa por viajar, por outros horizontes — é um homem muito adiantado para o seu tempo...

“Nação Crioula” é um livro, mas é, também, um programa de escrita também com um traço, não menor, ideológico. Talvez, por isso, tenha sido recebido de formas tão diversas...
Claro, em Angola foi levado como uma provocação! Chegaram a ver no livro uma espécie de elogio a “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. É um equívoco muito irritante. Mais bizarro ainda é terem dito que fazia a defesa do colonialismo português. É óbvio que não faz! O livro é uma crítica irónica ao colonialismo português! É um tipo de crítica absurda e já não se devia estar a discutir este tipo de coisas.

Parece existir um estigma sempre que um escritor — sobretudo quando é angolano — toca nas questões da identidade nacional. Concorda?
No fundo, é muito difícil ainda as pessoas assumirem as suas raízes de forma livre. Isto é: todos os angolanos, de língua materna portuguesa, têm uma cultura de matriz europeia. Há escritores que têm muita dificuldade em aceitar e, sobretudo, assumir esta condição, a sua origem.

Vai levar muito tempo a mudar toda esta rede de mal-entendidos?
Está a mudar, lentamente, mas está. Quando tocamos com a ironia, como é o caso em “Nação Crioula” torna muito mais difícil as coisas. Este livro divertiu-me muito, não só porque tem muitas piscadelas de olho ao Eça e à sua época, mas também porque há personagens que são inspiradas em figuras reais. Basta que o livro seja deslocado para o século XIX para que não se tope com isso, é muito divertido... Andam à procura das pessoas reais nos meus livros que se passam na actualidade e não há nenhuma personagem que tenha por base uma figura real. Na “Nação Crioula” é que elas lá estão! O livro é uma crítica à própria sociedade crioula! É sobretudo uma crítica à “nação crioula” — que é a que eu conheço e na qual eu me movo.

Todos somos crioulos, parece ser a mensagem do livro. Angolano, com raízes profundas portuguesas, o coração também no Brasil. Como é que se sente?
Houve um jornalista brasileiro que disse que “Nação Crioula” podia ser lido como um romance autobiográfico. Acho que ele tinha razão. Sinto-me, na verdade, à vontade em Portugal, em Angola ou no Brasil.

Dos três mundos — Portugal, Angola, Brasil —, o Brasil é um espaço de grande tolerância. O Brasil é um país integrador, completamente. Estou seis meses no Recife e, ao fim desse tempo, sou apresentado como o escritor de Olinda. Verdade?
Mais uma vez esta é uma grande diferença em relação a Angola: durante anos e anos, Angola praticou uma cultura de exclusão. Não apenas em relação aos portugueses. As pessoas do Norte de Angola eram acusadas de serem zairenses. Os exemplos são mais que muitos. Resultado: depois, não havia nenhum angolano, ninguém era angolano. O Brasil, não, o Brasil é exactamente o contrário: não passa pela cabeça de ninguém defender, ou sugerir sequer, que a Clarice Lispector é uma escritora ucraniana.

O Brasil é mais do que isso? Como que fecha o triângulo Portugal-Angola-Brasil...
Sim, eu tenho um pé no Brasil, o meu avô era brasileiro, como todos os portugueses têm. A maior parte dos Agualusas são, actualmente, brasileiros. A verdade é que sempre tive uma grande atracção pelo Brasil e nos angolanos, sobretudo os do litoral, esse sentimento é comum. O Brasil sempre influenciou muito Angola e Angola sempre teve uma relação profundíssima ao Brasil. Até aos finais do século XIX, a relação era mais forte com o Brasil do que com Portugal. É algo que muitas pessoas desconhecem: quem expulsou os holandeses de Angola foi uma armada brasileira.

Eça confrontou-se com o problema da escravatura, no seu primeiro posto consular em Cuba. Na última carta que escreve a Eça, em “Nação Crioula” [Paris, Outubro de 1888], Fradique afasta-se do seu amigo e criador e exclama: “Todo o ser vivo é imperialista. Viver é colonizar!” É mesmo assim?
[Silêncio.] Bom, não tenho que achar aquilo que as minhas personagens acham ou pensam. Neste caso, acho que sim. A história da humanidade é uma história de avanços através de outros territórios.

Costumo dizer a brincar: o primeiro homem nasceu no quintal da minha casa e que o quintal da minha casa ocupou o mundo. O primeiro imperialismo é o imperialismo africano, quando os árabes saem de África. Portugal é um resultado do imperialismo africano e romano! OK! Quando ouço falar do Viriato como herói de Portugal, não é! É um absurdo! Viriato é um herói contra Portugal — se o projecto de Viriato tivesse ganho, não existiria Portugal.

O colonialismo — qualquer colonialismo, porque para mim é absurdo discutir se este foi melhor ou pior do que aquele — é um processo complexo e gerou coisas positivas. Não foi tudo negativo. E mais: não se podem fazer juízos tão absolutos sobre processos tão complexos e a colonização portuguesa é um processo complexo que foi extremamente cruel. A escravatura dos negros africanos, a dos tempos modernos, que foram levados para as Américas é o maior crime que se praticou contra a humanidade! Não há nada que se possa comparar..., não há.

O que me fascinou foi como é que há pessoas que tendo consciência do horrível que é a escravatura participam nela. A questão põe-se, obviamente, com o Holocausto. É tão absurdo mas as pessoas conviveram com o Holocausto, com o nazismo. Temos a consciência do mal, mas somos atraídos para o mal...

    
   

 
José Eduardo Agualusa
 
 
José Eduardo ssAgualusa nasceu a 13 de Dezembro de 1960 na cidade de Huambo, planalto central de Angola. “Nação Crioula” foi publicado em 1997.