"Big Sur", de Jack Kerouac

Por Raquel Ribeiro

Kerouac deixou Nova Iorque e refugiou-se no paraíso, o Big Sur. Para fugir da fama da bebida. O resultado é um livro atormentado de um ser-para-a-morte. Pura poesia.

Kerouac deixou Nova Iorque e refugiou-se no paraíso, o Big Sur. Para fugir da fama e da bebida. O resultado é um livro atormentado de um ser-para-a-morte. Pura poesia.

Enseadas onde o Pacífico acalma a sua fúria. Gaios azuis acordam relutantes passageiros. Multidões de algas esborracham-se nas rochas. Sonhos e pesadelos. Monstros numa atmosfera pavorosa. Medo. Morte.

Em 1960, Jack Kerouac deixava Nova Iorque para se refugiar no Big Sur, região protegida da costa da Califórnia. Estava farto de ser perseguido por "adolescentes histéricos", os "beatniks" que ele tinha "criado" com o seu segundo romance, "Pela Estrada Fora" (1957), obra que o tornou famoso nos EUA, símbolo da "Beat Generation".

E conta histórias, entre alucinações assustadoras, sob efeito do álcool, e momentos de uma lucidez feroz, apenas possível num "condenado à morte". "Adolescentes saltavam os cerca de dois metros que eu mandara construir em volta do meu quintal para manter a privacidade - Bandos de foliões com garrafas na mão gritavam à janela do meu estúdio: 'Sai daí, vem embebedar-te!" - Uma mulher tocou-me à porta e disse assim: 'Não vou perguntar-lhe se você é Jack Duluoz porque sei que ele tem barba, não se importa de dizer-me onde posso encontrá-lo, preciso de um verdadeiro 'beatnik' para animar a minha farra anual'."

Ele era Jack Duluoz, o pseudónimo que Kerouac encontrou para se esconder atrás de si mesmo, em "Big Sur" (1962). Longe dos jornalistas, das garrafas de "whisky" empilhadas no chão da sala. Da fama e da bebida. Numa cabana em frente ao mar.

Noites de nevoeiro banhadas ao luar. "Acordar com o medo de uma morte misteriosa a escorrer-nos das orelhas." A primeira parte do livro, que corresponde a três semanas de ressaca, são pura poesia. Mas vislumbram-se já pequenos fragmentos de morte, Kerouac caminha lentamente à beira do precipício, a vacilar no musgo da encosta - um ser-para-a-morte. E toda a obra caminha para essa velhice que não vem nunca - ele agarra-se à garrafa, como uma bóia salva-vidas no Pacífico.

É impossível não pensar em "Pela Estrada Fora". Lembram-se de Sal Paradise? Agora está mais velho. E isso muda tudo.

Só não muda o estilo livre da composição, solta, fluída. Como quem escreve ao som do jazz. Improviso, hesitações, dúvidas e incertezas. Prosa espontânea e livre em discurso directo.

A ressaca

Mas a estadia no Big Sur dura pouco. Tal como a poesia. Quando regressa a São Francisco, o álcool nunca mais o deixa. Nem os suores frios. É impressionante a forma como descreve a ressaca, o "day after" das noites de desvario: "Na manhã seguinte já se sabe que vamos ter uma enorme dor de cabeça, mas consegue-se aliviá-la facilmente com mais alguns copos e uma refeição", conta Kerouac.

E continua: "Se deixamos de lado a refeição e nos entregamos a mais uma noite de bebedeira e mal acordamos pegamos logo na garrafa e continuamos assim até ao quarto dia, acaba por chegar uma altura em que a bebida já não faz efeito porque estamos quimicamente saturados e a única hipótese é fazermos uma cura de sono. Mas já nem conseguimos dormir porque foi o próprio álcool que nos fez dormir nas últimas cinco noites, e é então que surge o 'delirium tremens' - insónias, suores frios, tremuras, uma sensação de fraqueza entrecortada por gemidos, os braços dormentes e entorpecidos, pesadelos..."

"Big Sur" é todo ele sobre esses pesadelos, esses gemidos, esses monstros e as alucinações que povoam a cabeça de Kerouac, na ressaca do álcool.

Quem se lembra de Sal Paradise, nunca pensaria que ele terminaria assim, desfeito pela bebida, envelhecido ainda antes de chegar a idade, enfrentando a maturidade de garrafa na mão.

Reencontra Cody (o Dean Moriarty de "Pela Estrada Fora", dois pseudónimos de Neal Cassady), apaixona-se por Billie, discute budismo e filosofia zen com Arthur Ma. Continua a acreditar em Deus e na salvação. Repudia com todas as forças o sucesso de "Pela Estrada Fora", afasta-se dos "Beat". "Big Sur" é um romance negro, desiludido, devastador.

"No meu leito de morte eu talvez me recorde daquele dia passado junto ao regato e me esqueça do dia em que a MGM comprou o meu livro, poderei lembrar-me da velha 't-shirt' verde que alguém perdeu na lixeira e esquecer-me dos roupões cor de safira - Talvez seja essa a melhor maneira de entrar no Paraíso."

Foi no Paraíso - o Big Sur - que Kerouac escreveu o "poema ao mar", que fecha esta obra: "Nem mesmo o mar pode impedir-me de escrever páginas que lerei na minha velhice." Mas ele nem chegou à velhice.

    
   

 
Jack Kerouac
 
  Jack Kerouac nasceu em 1922 em Lowell, Massachussetts, EUA. “Big Sur” foi publicado em 1962. Morreu na Florida em 1969, de uma hemorragia provocada pelo excesso de álcool.