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"Big Sur", de Jack
Kerouac
Por Raquel Ribeiro
"Pela Estrada Fora" (1957) consagrou Jack Kerouac. E virou a sua vida do avesso: tornou-se o "rei" dos "beatniks", toda uma geração de jovens americanos, filhos do "baby boom", lhe fazia vénias, queria seguir os seus passos, desvendar os seus segredos, percorrer as estradas perdidas de Nova Iorque à costa Oeste.
Mas, em 1962, Kerouac estava farto da "treta beat", como lhe chamou: "Já mete nojo tanto entusiasmo de hordas de adolescentes histéricos que tentam conhecer-me e verter toda a sua existência na minha." Por isso, foi passar o Verão ao Big Sur, reserva natural selvagem da Califórnia, entre São Francisco e Los Angeles. O resultado desse refúgio foi "Big Sur" (1962), o livro negro de Kerouac, aquele em que já se sente o peso do álcool que lhe corroeu o corpo, o reencontro com Deus e com a natureza, a expiação dos pecados.
Kerouac tornou-se um ícone, mas deu-se mal com a fama. Não lhe subiu à cabeça. Pelo contrário, incomodou-o de tal modo que, se ele era já uma figura frágil, agarrada ao álcool e às anfetaminas (aliás, foi assim que conseguiu escrever "Pela Estrada Fora" em apenas três semanas), o sucesso desse hino à liberdade tornou-o irascível.
Na ressaca (e é a palavra certa) desse sucesso, Kerouac é um homem perdido na América, à procura de respostas para todas as dúvidas, dividido entre a lucidez e a crueza da realidade e a pura alucinação que os "dias-seguintes" ao excesso de álcool lhe provocam. Entre a felicidade torpe do Big Sur e o desespero de São Francisco.
E tudo isso se sente na linguagem, no discurso volátil e corrido, solto, de improviso de "Big Sur". E Kerouac (aqui Jack Duluoz, alter-ego, como Sal Paradise, de "Pela Estrada Fora" também o fora) é agora um homem quase-velho, diante da maturidade, mas ainda incapaz de a enfrentar. Agora, ele e o grupo (que é o mesmo de "Pela Estrada Fora") já não são miúdos, são (inconscientes) pais de família, com crianças no colo, choros e vómitos, transes e incertezas, paixões e desamores. E agora - sobretudo agora - Kerouac está sempre, sempre a beber, de garrafa na mão, com alucinações violentas, deslumbres estáticos, discussões sobre budismo e a essência da vida, desesperos sem causa, vindos de sítio nenhum.
"'Big Sur' é uma humana, exacta narrativa da espantosa devastação causada pelo 'delirium tremens' alcoólico em Kerouac, um romancista excepcional que forçou os seus limites, uma proeza que poucos escritores tão atormentados realizaram", escreveu Allen Ginsberg, que, com Kerouac, William Burroughs e Neal Cassady, criou a "beat generation".
Mas as desilusões foram enormes: nos anos 60, já quase não havia grupo, nem "rei dos beatniks". Kerouac afastou-se de Ginsberg, Cassady afastou-se de Kerouac. O mito desfez-se em lágrimas e lamentos. Tudo o que ele queria era conquistar o paraíso.
"Comprarei o meu bilhete, direi adeus a todos num dia florido, deixarei São Francisco para trás, cruzarei a América em pleno Outono de regresso a casa e tudo voltará ao que era no princípio". Mas não voltou: Kerouac continuou a beber, a beber, a beber em contramão. Morreu em 1969 - 7 anos depois de "Big Sur". Tinha 47 anos. De hemorragia provocada pelo excesso de álcool.
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