Uma baronesa entre dois mundos
Por António Marujo
Karen Blixen escreve em “África Minha”: “As pessoas
civilizadas perderam a capacidade de permanecer imóveis
e têm de aprender com o mundo selvagem para serem aceites
por ele.” A autora, vinda “de um mundo precipitado e barulhento
a um país silencioso”, viveu 17 anos no Quénia
(entre 1914 e 1931), gerindo uma plantação
de café e aprendendo com o mundo que adoptou como
seu.
“Out of Africa” (“África Minha” na versão
portuguesa) é o relato dessa aprendizagem e da atenção
dada às tradições e cultura dos nativos
que para ela trabalham. Blixen compreende muitos costumes,
discute outros. Tem por vezes um olhar quase antropológico,
embora não esconda algumas contradições
provocadas pela sua origem europeia e aristocrata.
É o que se nota quando Blixen compara somalis e massais
e não hesita em moralizar as suas observações: “Os
Somalis (…) atribuem a maior importância à virgindade
das noivas, mas as raparigas massais encaram a moral com
leviandade.” E, ao falar dos kikuyus: “O rebanho, ou seja,
estes povos pacientes, privados de dentes ou de garras, sem
poder e sem ter quem os protegesse na terra, conseguiram
enfrentar o seu destino, tal como ainda acontece actualmente,
devido à sua imensa capacidade de resignação.”
Apesar do condicionamento cultural,
Karen é uma mulher
decidida e de espírito livre, que põe em causa
algumas ideias feitas do colonialismo da época e luta
contra várias adversidades: a guerra (um dia, lidera
um safari para levar provisões aos soldados ingleses),
a economia e o mercado (insiste no cultivo do café a
uma altitude onde todos desaconselhavam), a natureza, o machismo
ou o racismo (antes de deixar África, tem de enfrentar
a complexa burocracia colonial para arranjar um novo terreno
para os nativos que vivem na sua fazenda).
A baronesa é vista pelos nativos como alguém
superior, chamada a resolver pequenos conflitos quotidianos
ou casos mais complexos. Quando, numa brincadeira de crianças,
Kabero mata Wanyangerri, começa um processo de meses
que culmina com um acordo selado pelo pagamento de uma vaca
e uma vitela. A trama do caso e o modo como Karen nele se
envolve revelam a sua compreensão profunda pela cultura
nativa.
Narradora brilhante
“África
Minha” é tudo isto. Mas é,
ao mesmo tempo, um notável exercício da arte
de narrar. A baronesa Blixen compara o que se passa entre
os seus dois mundos. “A arte de escutar uma narração
perdeuse na Europa. Os nativos de África, que não
sabem ler, ainda praticam essa arte. Se se lhes começar
a contar: ‘Uma vez um homem caminhava por uma planície
e encontrou outro homem', eles põem-se a escutar atentamente,
com os espíritos a seguir o trilho desconhecido seguido
pelo homem na planície.”
Karen faz esse exercício nas suas noites da fazenda,
quando é desafiada por Denys Finch-Hatton, que acaba
por se tornar o seu amante (e cuja presença no livro é quase
só pressentida). E repete-o em “Out of Africa”, ao
contar os safaris, as desventuras da fazenda, as visitas
que recebe. Somos por ela desafiados a acreditar no fantástico
que, à semelhança do imaginário nórdico
de “trolls”, princesas ou dragões, povoa também
o quotidiano africano de Karen Blixen.
O livro vale ainda pela galeria de personagens
que se cruza com a baronesa, pela identificação quase proustiana
entre as pessoas e a natureza, pela comparação
dos safaris com as caçadas nórdicas ou pela
descrição de ambientes como o das montanhas
Ngongo, onde se situa a fazenda: “Os panoramas eram imensamente
vastos e tudo o que se avistava evocava grandeza, liberdade
e uma incomparável nobreza.”
Blixen entusiasma-se também ao descrever em pormenor
as “ngomas”, as grandes danças nativas. “Esta força
e o amor pela vida que nelas existia pareciam-me não
só altamente respeitáveis, mas gloriosos e
enfeitiçantes” e conseguiam “provocar na audiência
um sentimento de beatitude ou um estado de espírito
guerreiro, conforme desejasse, ou ainda verdadeiras convulsões
de riso”.
No fio da navalha entre duas culturas,
mesmo sendo “aceite” pelo “mundo
selvagem” que conhecera, a baronesa não consegue ver
tudo. Como se percebe pelo diálogo que encerra o terceiro
capítulo, quando Ndwetti fala do voo que Karen Blixen
fizera com Denys:
“ — Hoje subiram muito alto. Não vos conseguíamos
ver, só ouvíamos o aeroplano zumbir como uma
abelha.
Concordei que andáramos a voar
muito alto.
— Viram Deus? — perguntou ele.
— Não, Ndwetti – respondi eu. Não
vimos Deus.
— Ah, então é porque não subiram o
suficiente. Mas digam-me lá: acham que conseguem subir
o suficiente no seu aeroplano para ver Deus? — perguntou
ele dirigindo-se a Denys.
— Na realidade, não sei — foi
a resposta.
— Então — disse Ndwetti — não
sei porque é que
vocês os dois vão voar.”
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