“O álibi de Deus”

Por José Vítor Malheiros

“O Cônsul Honorário” é, como outras histórias de Greene, também uma história de redenção, improvável e inesperada, mais humana que divina, mais modesta que gloriosa, operada talvez pela Providência, talvez por acaso, mas estranhamente tocante e onde o amor é o conceito operativo.

E duardo Plarr é um médico na casa dos trinta, filho de um pai inglês e uma mãe paraguaia, que acaba de se instalar numa pequena cidade do norte da Argentina, na margem do Paraná, com o Paraguai a espreitar da outra margem. A sua mãe ficou em Buenos Aires , onde se empanturra de “alfajores” e “dulce de leche” e vai suspirando pela sua antiga vida de proprietária, num Paraguai onde o seu marido escolheu ficar para se opor à ditadura do general Stroessner, depois de ter obrigado a mulher e o filho a refugiar-se na Argentina.

Plarr é um homem compassivo com os seus doentes do Barrio Popular, que trata de graça, mas duro e amargo, que vive com culpa o desaparecimento do seu pai e o egoísmo da mãe e que acredita que o único verdadeiro amor que há na terra, puro e perene, é o que ela nutre pelas pastelarias da Calle Florida.

Charles Fortnum é um inglês sexagenário, pequeno plantador de mate, alcoólico inveterado e frequentador do bordel da cidade, nomeado cônsul honorário do Reino Unido (“United bloody Kingdom”) em jeito de agradecimento por ter uma vez acompanhado membros da família real num passeio turístico na região.

Fortnum conhece o “scotch” como “único sacramento”, precisa de algo mais de meia garrafa de Long John para enfrentar o mundo, tem monólogos etílicos torrenciais e é um embaraço para a embaixada britânica em Buenos Aires e um incómodo para os seus conhecidos.

É entre estes dois homens que Graham Greene constrói a teia do seu romance “O Cônsul Honorário”, mistura de tragédia grega e melodrama sentimental, drama moral em pano de fundo político-policial, onde a questão da fé — como em praticamente todas as obras de Greene — ocupa um papel central.

A estes dois homens vêm juntar-se um padre despadrado, revolucionário e penitente, disposto a imolar-se para servir (e resolver) os exigentes princípios da sua fé contraditória na hóstia e na espingarda, e uma jovem prostituta, inocente e experiente, que tenta aprender as regras sentimentais do mundo fora dos muros do bordel e que é o objecto de desejo que vai fazer emergir o melhor e o pior de Plarr e Fortnum.

O refém inútil
O romance giro em torno de uma peripécia central, que tem como única função sublinhar a patética derisão do mundo (e dos céus): um grupo de guerrilheiros rapta por engano o cônsul honorário, confundindo-o com o embaixador americano, para exigir como resgate a libertação de uma dezena de presos políticos. É claro que a utilidade de Fortnum como refém é nula pois ninguém está minimamente interessado na sua sorte. Politicamente, a sua insignificância é útil aos políticos, que podem negar-se a negociar com os raptores, invocando uma posição de princípio, sem qualquer custo.

O livro poderia ser um drama policial, mas o rapto serve apenas como o pano de fundo onde os escassos personagens podem expor, com um recorte quase teatral, os seus desejos e angústias, os seus sentimentos sobre Deus e o mundo. O rapto falhado é o momento de verdade que permite toda a lucidez e todas as confissões.

A prosa de Greene é, como sempre, económica e directa, de uma sobriedade sem decoração, às vezes até lacónica, mesmo (ou principalmente) nos diálogos de maior densidade, como o que se estabelece entre Plarr e o padre sobre a maldade de Deus: “O livre arbítrio é a desculpa para tudo. É o álibi de Deus.”

Como é habitual em Greene, o autor usa o personagem central — neste caso Plarr, um cínico que não acredita em nada, aparentemente incapaz de verdadeiros sentimentos — não como o agente, mas como o espectador da acção, uma espécie de advogado do diabo que valida através do seu cepticismo ou do seu ciúme as manifestações de fé ou de amor que lhe passam à frente.

Plarr é um homem intrigado pela fé, que a rejeita sem hesitações mas não resiste a olhá-la de fora, nos gestos do padre León, como alguém pode observar um louco, num misto de horror fascinado, de curiosidade, de espanto e com uma inveja inconfessada por esse absoluto.

Uma história de redenção
Plarr será a testemunha não apenas do rapto, mas também dos sentimentos que ele faz emergir: a abnegação redentora do amor e essa fé insensata e contraditória, inútil mas inescapável, geradora de um enorme sofrimento próprio e alheio, uma fé que parece mais uma condenação que uma libertação, capaz de fazer cometer os maiores crimes mas que também permite a redenção.

Como outras histórias de Greene, esta é também (ou principalmente) uma história de redenção, uma redenção improvável e inesperada, mais humana que divina, mais modesta que gloriosa, operada talvez pela Providência, talvez por acaso, mas estranhamente tocante e onde o amor é o conceito operativo.

Plarr sabe que a fé é um enigma inútil e que não há salvação. O padre León procura-a porque sabe que não há alternativa. Ambos conseguem fugir ao pior dos destinos (a traição e o crime), devido a uma benevolência do destino. Mas só Fortnum se salva, improvavelmente, porque ama. Apesar de tudo, no final, será difícil dizer quem ganhou e quem perdeu, como se Deus se divertisse com os nossos dilemas. Se a fé e o amor ganham, o mundo não parece por isso ser um sítio melhor. “A verdade é quase sempre cómica”, como diz um dos personagens de “O Cônsul Honorário”.

    
   

 
Graham Greene