“Vivemos num clima mais perverso do que na ditadura”

Concorda que a situação que o país vive, desde há alguns meses, é um excelente tema de ficção. Só não sabe se conseguiria ficcioná-lo, porque não sabe se é “verdadeiramente um ficcionista”. É o político a falar mais do que o escritor. Manuel Alegre está revoltado.

PÚBLICO – O clima orweliano que o país vive – sobretudo para alguém que sofreu com a ditadura e é escritor — não é um excelente tema de ficção?
MANUEL ALEGRE – É. Mas talvez para quem seja verdadeiramente um ficcionista. E eu não sei se sou verdadeiramente um ficcionista.

É o coração político que não o deixa distanciar-se?
É todo um envolvimento que nenhum outro escritor tem. Estive em todas. Antes, durante e depois do 25 de Abril. De maneira que esse distanciamento, necessário à escrita, é-me sempre difícil de ter. É-me difícil inventar as personagens quando as conheço, reais, que fizeram a História. Conheço-os, convivi com eles. E, às vezes, interrogo-me: por que razão hei-de estar a inventar personagens quando a realidade é muito mais rica do que aquilo que se possa imaginar! Fui confrontado com isso quando estava a escrever o meu último livro, “Rafael”. Agora, a situação actual, como tema de ficção é um grande tema: estamos a viver uma situação quase kafkiana.

O que é que o preocupa mais? O número de escutas telefónicas...
Apetece-me perguntar ao Presidente da República: “Posso telefonar-lhe sem ter a certeza de que estamos a ser escutados?” Ou como é que posso intervir na vida política, pública ou literária do meu país, sem saber como é que vou falar com Ferro Rodrigues! Sem saber se estou a contribuir para que Paulo Pedroso fique mais uns meses na cadeia! Isto é Kafka! Porque eu estive preso, mas sabia por que é que estava. Combatíamos, mas sabíamos o que é que combatíamos. Éramos escutados, mas sabíamos quem nos estava a escutar, e tomávamos as nossas precauções. Agora não! Entrámos num delírio em que parece que toda a gente escuta toda a gente! Parece que há algo de obscuro, que não se sabe exactamente o que é e de onde vem: isso é kafkiano, é do domínio da ficção.

Os dois partidos que, rotativamente, dividem o poder político, que legislaram sobre matérias de Justiça, não são os principais responsáveis?
São. E o Partido Socialista tem grandes responsabilidades. Eu, pessoalmente, não tenho muitas, porque votei sempre contra uma certa tendência de segurança...

Mas um Estado de Direito democrático tem que definir as suas fronteiras.
Quando nós não definimos rigorosamente uma lei em matéria tão grave, como é o das escutas telefónicas, isto dá lugar a interpretações extensivas e abusivas. Nós, actualmente, temos um problema de direitos, liberdades e garantias. A democracia está refém deste ordenamento jurídico perverso que dá lugar a interpretações tão perversas como esta que estamos a viver. As pessoas começam a ter medo. É muito preocupante. Há um clima de suspeição generalizado.

Não sente uma espécie de “melancolia democrática”, próxima da impotência?
De certo modo, sim. Vivemos num clima mais perverso do que aquele que vivemos na ditadura. É muito desagradável dizer isto, mas é mais perverso: porque, na ditadura, eu sabia quem era o inimigo, sabia os riscos que corria, e, quando era preso, sabia por que é que era. Era uma situação clara. Neste momento, é uma situação perversa. E ninguém – partidos, todos os órgãos de soberania, poder judicial, comunicação social – pode sacudir a água do capote! Mais: esta situação não pode prolongar-se por muito mais tempo.

C.C.L.

    
   

 
Manuel Alegre
 
 
Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936. “A Terceira Rosa” foi publicado em 1998.