“A Terceira Rosa”
O nome da paixão

“(Que nome te dar? Tu és única. Tu és todas. Ou talvez nenhuma. Eu sou tu. Tu és eu. A outra metade de mim. A parte de ti que de mim ficou. A parte de mim que foi contigo. Ninguém me foi tão próximo. Ninguém me escapou tanto. Como foi que constantemente nos encontrámos e nos perdemos? Esta é a história. Uma história sem história. Um história só isto.)”

O leitor chega ao fragmento número 22 e já sabe que há um eu, Xavier, e um tu, Cláudia, personagens centrais de um amor, mas não de um amor qualquer. Mas do amor. Vá até ao primeiro fragmento e volte a ler de novo. “Olá disseste. E a terra começou a tremer.” A partir de então, nada será como dantes.

“A Terceira Rosa” conta, ao limite, o que é impossível de contar: o nome de uma paixão. O que pode ser tão empolgante e, ao mesmo tempo, tão destrutivo quando dois seres se reconhecem como sendo a outra metade do outro. E confessam: tu és o meu homem ou tu és a minha mulher. Sabem mais: que desejo e morte se confundem.

Para captar este dilaceramento entre dois seres, que se cheiram (os corpos nunca se enganam – “Os nossos corpos têm a mesma batida, o mesmo ritmo, o mesmo tango por dentro”, fragmento 6) e tacteiam a alma (“Alma com alma, diria o padre”, lê-se no mesmo trecho) –, Manuel Alegre opta por uma estratégia formal estilhaçada, onde a inclusão de parêntesis aponta para um dentro e um fora, objectividade/subjectividade. Um lance de ocultação/desocultação que, em termos ficcionais, se aproxima de um registo poético ou de um encadeamento de vídeo-clips. É uma viagem pela memória, difícil de desmontar, tal a dor a que pode estar associada a experiência da paixão.

Quarta incursão na ficção do poeta de “Senhora das Tempestades” – esse livro mágico na obra de Manuel Alegre –, “A Terceira Rosa” abarca um período histórico que vai da ditadura (Cláudia é filha de um dos senhores da situação, como se dizia, Xavier militava do outro lado da barricada) aos primeiros dias da Revolução de Abril, em que Manuel Alegre, ele próprio, se convoca como um dos homens de Argel que não participa numa manifestação, ao lado de Soares, Cunhal e Zenha. Entre o tempo histórico-político, o Tempo, os tempos do amor, às vezes suspenso por um presente atemporal. A escrita dobra-se, rente ao dizer das coisas, inclusive das coisas da escrita, o caso mais explícito é da caligrafia de Cláudia, que acaba por dar ordem ao caos dos sentimentos. Quando não é possível, o registo de “A Terceira Rosa” aproxima-se daquela terra de ninguém, onde a decifração é dada a partir de um ritual. Do sagrado. Da metáfora. “Era, como dizer, um espécie de liturgia ou sagração, Cláudia bebia de Xavier o sumo das ameixas, ele bebia nela o seu próprio sumo, que não era senão o sumo do Verão, esse milagre. Talvez se deva também dizer: por vezes Cláudia fazia coisas estranhas. É mais certo dizer: sagradas.” A união era de tal forma inquebrantável que num certo Julho “o espírito de Deus, se Deus existe, paira[va] de certeza sobre” Cláudia e Xavier.

O arco-íris da intensidade amorosa que esta narrativa reflecte prolonga-se para além do concreto: deste Xavier e desta Cláudia – que existiram mas que se tornam, aos nosso olhos, arquétipos absolutos. Por isso, “A Terceira Rosa”, se fala de um eu e de um tu, fala sobretudo do nome (da experiência) da paixão. Se um dia passarmos por ela, sentiremos a terra a tremer...

C.C.L.

    
   

 
Manuel Alegre
 
 
Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936. “A Terceira Rosa” foi publicado em 1998.