|
|
Manuel Alegre
“A escrita, como a vida, é feita
de fragmentos”
Carlos Câmara Leme
A os 67 anos, Manuel Alegre acaba de
entregar na sua editora, a Dom Quixote, um livro sobre
o exílio, “Rafael”.
Antes dele, tinha escrito “Cão como Nós”, que
já vendeu 120 mil exemplares. E antes ainda, “A Terceira
Rosa”, onde conta a história de uma paixão,
entre Xavier e Cláudia, e um romance onde é possível
entrever o próprio escritor. Alegre escreveu-o como
pensa que a vida se nos oferece: em pequenos momentos, em
fragmentos de eternidade, sabendo que há coisas que
não podem ser escritas, ou, como diz, “inundadas pela
prosa”. E a poesia? “A poesia, como a matemática e
a física quântica, apanha tudo.”
PÚBLICO – No fim do fragmento inicial
do romance, lê-se: “E a terra começou a tremer.” Verdadeiramente,
quando é que isso aconteceu?
MANUEL ALEGRE – “A
Terceira Rosa” parte de uma vivência,
como é óbvio, mas é uma recriação
literária. A terra começou a tremer, em sentido
real e metafórico, desde que tenho consciência
de mim. É uma coisa que se dá na infância,
sem a consciência do que é, e que depois, na
adolescência, se transforma numa paixão. Estou
a falar na mulher do livro...
Já não se sente tão
irritado quando, em 1999, lhe perguntaram se a Cláudia
sempre existiu?
Há um Xavier e uma Cláudia
em todos nós.
E há sempre uma paixão primeira. Mas, ao mesmo
tempo, há uma transfiguração que tem
que ver com toda uma tradição do amor ocidental:
do amor cortês, das minhas próprias leituras
do romance de cavalaria, do “Cavaleiro Andante”, dos romances
de Walter Scott, do Santo Graal, enfim, de “A Menina e Moça”,
do Bernardim Ribeiro, que aparece no livro muito explicitamente...
... para dizer algo que é arrepiante
mas, quem tenha passado pela sensação da
terra a tremer, sabe quanto é cruelmente verdade: “A
paixão
não repousa em outra paixão.” Dito de outra
maneira: a paixão pela Cláudia concreta permanece
ainda, “passa e não passa”, como diz o pai de Xavier?
Todo
o amor só dura aquilo que se perde. Há a
Cláudia real e a Cláudia inventada – eu não
sei qual é a mais verdadeira! Mas uma e outra talvez
personifiquem o amor. No fundo, ama-se o amor, a paixão.
Pode amar-se uma pessoa concreta. Mas o problema do abstracto é quando
o real se transforma nessa abstracção, no amor
do amor.
E a morte de Cláudia também
foi real-real ou é uma ficção?
É real
e não é real! É real
na medida em que há um momento em que há um
corte, que é um momento de morte, como há muitas
formas de ressurreição.
O Manuel Alegre de “A Terceira Rosa” é mais
ficcional, e menos confessional do que em “Alma”. Mas está a
narrar algo de mais intimista.
Talvez seja uma ocultação.
Mais: talvez seja impossível uma escrita sem essa
ocultação.
Nem gosto do tom confessional, e acho que foram muito poucos
os escritores que acertaram quando foram por esse caminho.
Talvez Rilke tenha acertado quando escreveu “Cadernos de
Laurids Brigge”.
Formalmente, o livro é muito depurado.
Quem é quem
dentro e fora dos parêntesis?
É uma espécie
de jogo. Inclusive a introdução
do Manuel Alegre-ele-próprio no romance. Nos parêntesis
há mais o eu-próprio-o-outro, a lembrar o que
disse Mário de Sá-Carneiro, o Xavier, e fora
deles há mais a narrativa. É um jogo entre,
se quisermos, ocultação e desocultação.
Esse processo gráfico-formal como é que
surgiu?
Começou por aparecer no “Jornada de África”.
Acho que tem que ver com a poesia e com o cinema. A escrita
vive de breves instantes como a vida, são breves instantes
de eternidade. Quando fazemos o balanço das nossas
vidas, o que temos são pedaços desses breves
instantes – que têm que ver com a morte, com amizade,
com um poema, com um quadro que se vê, um fim de tarde.
A escrita, como a vida, é feita de fragmentos. Talvez
não seja um romancista, ou não sei bem o que é hoje
ser romancista, e não vejo que se possa fazer uma
narrativa hoje que não seja através da colagem
ou da montagem desses fragmentos.
É uma cedência ou um condicionamento
da nossa pós-modernidade?
Não tem que
ver com a pós-modernidade! Para
mim, tem mais que ver com a dificuldade em definir as fronteiras
entre poesia e prosa. Vejo o romance, como inundação
da prosa, como poesia – através de uma escrita não
rimada, mas ritmada – e até como ensaio. Se formos
a ver nos romances antigos de Tolstoi, Thomas Mann ou Flaubert,
há um pouco de tudo isso. Mas hoje, em que o tempo,
de repente, mudou de velocidade com as novas tecnologias,
com a Internet a ficção e a poesia...
...não conseguem apanhar tudo, é isso?
Por isso a escrita só pode captar a fragmentação?
A
poesia, como a matemática e a física quântica,
apanha tudo. Mas acho difícil uma prosa que não
integre a poesia, o ensaio, o cinema e esta nova escrita
da cibernética, das mensagens dos telemóveis.
A fragmentação vai acentuar-se. Acho que António
Lobo Antunes apanhou bem isso, por exemplo, em “O Esplendor
de Portugal”, que reli há pouco tempo. Do ponto de
vista da escrita, correndo o risco de perder o fio à meada,
ele percebeu a fragmentação da linguagem, dos
tempos, em que há uma espécie de orquestração
da própria prosa.
Não lhe ocorreu a escrita
de Maria Gabriela Llansol?
Ela faz uma espécie de
intersepcionismo da prosa, como encontramos em “As Ondas”,
de Virginia Wolf, que é provavelmente
um dos mais modernos e um dos mais fantásticos livros
que li. Talvez o romance vá para aí, ou para
uma estrutura narrativa de um Paul Auster. O que para mim é difícil é separar
as fronteiras entre prosa e poesia.
Por que razão chegou à prosa
tão
tardiamente?
A própria vida que tive e a necessidade
de ter algum distanciamento em relação à intensidade
com que me embrenhei nas coisas. É difícil
passar as coisas para a prosa, quando se tem uma vida muito
intensa, muito povoada de acontecimentos, viagens, sítios.
Também por isso, “A Terceira Rosa” está carregado
de uma enorme vertente poética. A certa altura o
narrador diz: “O que sei, mas isso outros o dirão
muito melhor, é que a paixão é uma
festa e um veneno, rosa e cicuta, rima com puta, agora
sim, palavra certa para tanto fogo e tanta mágoa.” É um
poema... Mas a história da paixão por Cláudia
não passou, formalmente, por um livro de poemas.
Porquê?
Não sei explicar isso! Nunca tive
uma grande paciência
para a prosa burocrática, sentarme à mesa,
escrever das tantas às tantas. A escrita, para mim,
vem como uma toada, como um ritmo. Ultimamente isso tem-me
acontecido mais com este tipo de escrita em que me envolvi
com “A Terceira Rosa”.
Tem alguma explicação
para isso?
[Enquanto se deixa cair para trás no “maple”,
há um
silêncio. Longo]. Esse estado de graça irrepetível
tem que ver com circunstâncias irrepetíveis...
Como ir ao outro lado e vir. Não se vai lá muitas
vezes. Ou melhor: não se volta assim muitas [risos].
Mas essa questão já me deu muitas vezes que
pensar... O chamado estado de graça, ou estado do
poema, é dificilmente repetível, e estou hoje
muito menos disponível. Ou o poema acontece e se me
impõe. Ou então dá-se na prosa. É engraçado,
porque Pessoa valoriza a prosa em detrimento da poesia, num
texto que é fundamental, mas que não tenho
presente, o que é o contrário do que acontece
com a maioria dos escritores.
Em diversas entrevistas que deu,
quer se fale da arte poética, quer da de escrever,
disse que é a
arte de perguntar – quando é sabido, como o narrador
numa certa passagem diz, “nem toda a vida passa para a
escrita”. Perguntar o quê?
Perguntar o que é o
sentido da vida, todas aquelas coisas que são velhas
e que acabam por ser novas. Claro que há perguntas
sem resposta: eu não
digo que sou ateu. Deus ou não-Deus? Ninguém
saberá nunca responder. Ou se acredita ou não
se acredita, e no plano da fé, não se discute.
A pergunta é se isto faz sentido ou que é que
andamos aqui a fazer. E a arte é isso: é uma
pergunta que incessantemente se repete. É tentar dizer
o indizível. É como o amor – é difícil
de dizer, e não sei se o consegui em “A Terceira Rosa”.
Como é que se pode compreender,
sobretudo depois da experiência de “Senhora das Tempestades”,
o que disse ao PÚBLICO, em 1999: “Tenho a sensação
que começo agora a escrever.”
Tive a vaga sensação,
desde “Senhora das Tempestades”,
porventura depois da experiência por que passei, que
tinha a urgência de dizer o que até agora não
tinha dito. Talvez porque passei a ter um outro olhar sobre
a vida, talvez porque me tenha dado conta de que me tinha embrulhado
de mais na vida política e tinha que me distanciar das
coisas para começar a escrever. Ou a voltar ao período
de “O Canto e as Armas” ou de “A Praça da Canção”,
em que escrever era uma espécie de exaltação.
|