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Livros em cinzas
A literatura é proibida, os
bombeiros existem para incendiar livros, as guerras demoram
somente alguns segundos. É esta a sociedade do século
XXIV, idealizada pelo escritor Ray Bradbury no romance “Fahrenheit
451”. O livro foi escrito há precisamente meio
século.
Por Maria José Oliveira
É um daqueles romances intemporais,
mas as ideias que estiveram na origem da sua criação
não foram indiferentes à conjuntura da época.
Ray Bradbury (n. 1920, Waukegan, Illinois, fez na passada
sexta-feira 83 anos) escreveu “Fahrenheit 451”
em 1953, num momento em que os EUA viviam sob um esmagador
clima opressivo. A ressaca da II Guerra Mundial manifestava-se
em tons autoritários, especialmente traduzidos na caça
às bruxas”, na perseguição intelectual
macartista. Não existiram coincidências –
“Fahrenheit 451” chegou aos prelos poucos anos
depois de “1984”, de George Orwell, e muito para
além do género ficção científica)
com o qual foi rotulado, insinuou-se sobretudo como um livro
de crítica social. O futuro já existia.
1. “Queimar era um prazer.” No
primeiro capítulo de “Fahrenheit 451”,
A Fornalha e a Salamandra”, o autor norte-americano
avança com uma concisa apresentação da
sociedade hedonista na qual se move Guy Montag, protagonista
do romance. O “paraíso” do futuro (século
XXIV), mergulhado na estagnação individual,
é uma construção baseada na abolição
das ideias e do pensamento. Os livros são ilegais,
as bibliotecas foram destruídas, toda a informação
é controlada pelo Estado, não existe memória
da civilização. Os bombeiros já não
apagam incêndios — andam armados com mangueiras
que cospem gasolina nos livros e nas casas que os escondem
clandestinamente, e os seus proprietários são
presos.
Montag é bombeiro, ostenta uma salamandra
bordada no braço e uma fénix dentro de um círculo
cosido à lapela do casaco. Orgulha-se da sua prestação
cívica — a literatura torna as pessoas “infelizes”
—, conhece somente os nomes dos escritores dos livros
que incendeia (Faulkner, Whitman, Marco Aurélio, Dante),
mas não sabe que de manhã há orvalho
nas ervas, nem nunca cheirou flores velhas. Numa noite, durante
o regresso a casa, conhece Clarisse, que lhe pergunta se é
feliz. “Feliz! Que idiotice... Naturalmente que sou
feliz.”
A questão, porém, inquieta os
seus pensamentos e revela-se ainda mais perturbadora quando
Montag encontra a sua mulher, Mildred, inanimada. Voltara
tomar uma “overdose” de comprimidos para dormir.
Casos como o de Mildred aconteciam nove ou dez por noite.
Bastava chamar operadores que, através de uma máquina
de tubos, aspiravam o sangue envenenado. Poucas horas depois,
a mulher acordaria sem se recordar de nada.
2. “Passaram uma longa tarde a ler.”
O fogo era purificação, símbolo de erradicação
de um mal (a literatura) que ameaçava a sociedade.
Montag olha as chamas e, onde via poder, vislumbra opressão.
O “cão-polícia” dos bombeiros, máquina
munida de uma agulha de aço com doses maciças
de morfina e de um sistema capaz de detectar leitores, começa
a aterrorizar bombeiro.
Há uma nova denúncia e o alarme
soa. Montag e os restantes bombeiros dirigem- se para uma
casa de dois andares, encontram uma idosa e arrombam um sótão
atafulhado de livros. Ela acaricia as lombadas e as páginas
dos volumes, entretanto regados com gasolina, começa
a citar bispo Hugh Latimer, condenado à fogueira da
Inquisição no século XVI — “Vamos
hoje, pela graça de Deus, acender na Inglaterra um
facho que, tenho a certeza, nunca mais se extinguirá”
— e recusa abandonar a sua biblioteca, acabando por
morrer juntamente com os seus livros.
Montag confronta-se com um desespero irreprimível.
Retira da caixa do ventilador de sua casa os livros que recolhera
secretamente durante os incêndios e que nunca ousara
sequer tocar. Entrega-se, então, ao desfolhar das páginas,
à leitura e releitura dos mesmos textos, à descoberta
de autores, ao encontro com a poesia. A sua revolta interior
recrudesce. Idealiza juntamente com um velho académico,
Faber, a reprodução clandestina de vários
livros e inicia um processo de “autodestruição”
que não admite retrocessos. Desvia-se das “normas”
e, durante algum tempo, vive sob a ilusão da felicidade
oferecida pela literatura.
O alarme soa. Montag está no quartel,
olha para o visor que indica a direcção da casa
que ficará em cinzas. Lê a sua morada.
3. “Aqui estamos todos reunidos. Aristófanes,
o Mahatma Gandhi e Gautama Buda, Confúcio, Thomas Loev
Peacock, Thomas Jefferson, Karl marx e o sr. Lincoln.”
A inquietação do bombeiro é acompanhada
pelos ecos próximos de uma guerra. As bombas acabarão
por destruir a cidade, mas antes disso Montag transforma-se
num fugitivo.
Perseguido pelo cão assassino, procurado
por todos (instigados pela televisão e rádio),
Montag encontra na água a sua salvação.
Mergulha no rio e deixa-se levar pela corrente, descobrindo,
de seguida, num lugar indicado por Faber, uma comunidade de
intelectuais classificados como “perigosos” para
a sociedade.
O refúgio alberga antigos académicos,
escritores e amantes da literatura, mas ali não existe
um único livro. Cada um deles, aprende Montag, memorizou
uma obra literária — “somos todos constituídos
por pedaços, extractos de história, de literatura,
de direito internacional, Byron, Tom Paine, Maquiavel, Engels,
Cristo, tudo está registado. (...) Transmitiremos oralmente
o conteúdo dos livros aos nossos filhos e os nosso
filhos, por sua vez, levarão o ensino aos outros”,
explicam.
Montag caminha com este exército de
homens-livros ao longo da antiga via férrea. Ouvem,
ao longe, os primeiros bombardeamentos sobre a cidade. A guerra
demora apenas alguns instantes — os aviões voam
a sete mil quilómetros à hora, o silvo das bombas
é tão veloz quanto a desintegração
da cidade. A enorme nuvem de poeira que chega até junto
de Montag e dos seus companheiros dá lugar à
chuva. Todos sabem que é altura de subir o rio e de
alcançar o lugar de abandono e agonia em que se transformou
a cidade. Aproxima-se o momento de repetir aquilo que foi
memorizado, de responder: “Nós lembramo-nos.”
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