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“Fahrenheit 451”,
de Ray Bradbury
Para além de ser um dos melhores
títulos de ficção científica,
o romance é também um manifesto contra a repressão
intelectual. Um mundo sem livros é um mundo sem memória
Por Maria José Oliveira
Passado no século XXIV, num mundo sem
memória, “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury
(n. 1920, Waukegan, Illinois, EUA), narra a história
de um homem agrilhoado que ousa libertarse das teias da censura
e da repressão intelectual. Em termos muito concisos,
é esta a interpretação que irrompe do
livro, escrito no pós-guerra, em 1953. Mais do que
um romance de ficção científica —
ainda hoje é considerado um dos paradigmas deste género
literário —, “Fahrenheit 451” deve
também ser lido sob a perspectiva da crítica
social. Que é sustentada pelos acontecimentos históricos
da década em que o livro foi escrito: nos EUA assistia-se
então ao despertar da opressão política
e intelectual do Macartismo e sobreviviam ainda memórias
das bárbaras perseguições nazis.
Ray Bradbury centra a narrativa nas convulsões
psicológicas de um homem, Guy Montag, ensombrado por
uma vida estéril num mundo estéril e totalitário.
No século XXIV, os bombeiros não são
sinónimo de heroísmo nem têm a tarefa
de apagar incêndios (todas as construções
são à prova de fogo e espaços verdes
quase não existem). Ocupam-se, antes, de um sinistro
trabalho: existem para queimar livros e incendiar as casas
daqueles que cometem a ilegalidade de possuir literatura.
“Fahrenheit 451”, que dá titulo ao livro,
é precisamente a escala e a graduação
usada para incendiar os volumes.
Montag é bombeiro, tem cerca de 30 anos
e é casado com Mildred, uma mulher que chama “família”
às personagens da sua televisão interactiva
de três paredes e que usa constantemente uns auriculares,
em forma de conchas, para continuar a ouvir os “parentes”.
A apatia de Montag em relação a tudo o que o
rodeia — encara o seu trabalho com um sentido dogmático
de patriotismo e justiça — dissipa-se ao longo
do romance. Clarisse, uma jovem que conhece na rua e lhe pergunta
se é feliz, o professor Faber, antigo académico,
e um acontecimento trágico — a imolação
de uma mulher que quer morrer com os seus livros — transformam-se
nos catalisadores de um despertar inquietante e irreprimível.
Montag ousa então folhear as páginas de alguns
livros guardados clandestinamente, aterroriza os passageiros
do metro quando tira um volume do bolso do casaco e conspira
com Faber para reproduzir vários títulos. Até
que um dia o alarme toca no quartel e Montag percebe que o
carro dos bombeiros dirige-se para sua casa. A angústia
que o vai corrompendo, mas que simultaneamente fortalece a
sua luta contra a ignorância da sociedade, conflui no
assassínio do seu chefe e numa fuga aparentemente inexequível.
A etapa final da transformação
de Montag —que entretanto se deixa levar pela corrente
de um rio até vislumbrar velhos carris de comboios
— acontece quando encontra uma comunidade sobrevivente
de antigos académicos e escritores, fugitivos que formaram
na floresta uma espécie de exército de homenslivros
(cada um deles memorizou um livro, podendo reproduzi-lo na
íntegra para o renascimento da sociedade intelectual).
Ray Bradury não cinge, pois, o enredo
de “Fahrenheit 451” à crítica da
censura: a história de Guy Montag representa também
o combate individual num mundo de obediência servil
e a sabedoria que somente pode ser descoberta nas páginas
dos livros.
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