O livro do Presidente brasileiro

Lança-se ao mundo a história de “O Velho e o Mar” e o anzol de Hemingway prende-se a Lula da Silva, o Presidente do Brasil e retrato vivo de Santiago, o velho pescador.

Por Maria José Oliveira

É cada vez mais raro ouvir a classe política usar um livro para exemplificar um gesto, justificar uma posição, combater críticas e acusações, argumentar estratégias. O Presidente Lula da Silva, do Brasil, foi talvez o último a fazê-lo. E poderá reincidir nas alusões: a obra que escolheu, meio século passado sobre a sua publicação, pode ser lida como uma alegoria da tenacidade demonstrada pelo Presidente do Brasil. Um livro ao qual se associa uma ideia de lição, de mensagem despida de falsos moralismos.

Lula viveu já a primeira parte da história de “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway (1899, Oak Park, Illinois — 1961, Ketchum, Idaho) —, incorporou a bravura e a persistência do velho e solitário pescador, Santiago, com a sua ascensão ao Palácio do Planalto. Alcançada a presidência brasileira — o espadarte gigantesco que Santiago captura após 84 dias de penúria, sem apanhar qualquer peixe —, Lula da Silva continua a representar a parábola do pescador de Hemingway: apesar de vitorioso, não cede à luz artificial do triunfo e ainda resiste.

É isso mesmo que se vislumbra na sua luta contra os predadores do mundo contemporâneo. Em “O Velho e o Mar” eles são os tubarões: impossibilitado de colocar o grande espadarte no interior do seu esquife, Santiago amarra-o à proa, mas o rasto de sangue que vai escurecendo as águas atrai os “makos” e os “galanos” (tubarões), contra os quais o pescador luta insistentemente na esperança de chegar à praia com o peixe intacto.

A “paciência de pescador” Em Junho, durante uma cerimónia no Palácio do Planalto, Lula da Silva aludiu ao livro de Hemingway, num discurso Ernest Hemingway que teve como destinatários não apenas os brasileiros, mas também todos aqueles que, um pouco por todo o mundo, manifestam indignação pelas reformas que, alegam, tardam por concretizar- se. Bastou uma única frase — “Ninguém tem mais paciência do que o pescador, porque aqueles apressados que ficam cinco minutos e já caem fora, achando que não vai dar nada, e não têm paciência de esperar um bom cardume passar para a gente poder voltar para casa” — para o Presidente do Brasil justificar todo um empenhamento contra as pressões que lhe são lançadas, ao mesmo tempo que transmitiu um dos ensinamentos da sua vida: saber esperar. Mas Lula insistiu em prolongar as comparações com uma história que, contou, “mostra a esperança de conseguir realizar um sonho”.

Baptizou o peixe de Santiago de “justiça social” e pediu “paciência de pescador” aos que preconizaram soluções mágicas. A todos, Lula respondeu, tal como fez Santiago nas suas meditações em alto mar: “Sabemos que o desafio enfrentado nas águas é o mesmo que vivemos em terra firme.”

A história regressa ao início: em 1952, quando Ernest Hemingway escreveu “O Velho e o Mar” (vivia então em Finca Vigía, a sua propriedade nos arredores de Havana), a crítica dizia já não acreditar no seu génio literário. Mas a pequena e simples história de um solitário pescador que, em alto mar, apanha um peixe enorme, contra o qual luta desesperadamente durante quase quatro dias, surpreendeu o meio literário. Esse mar por onde erra Santiago é a vida, e ele o símbolo da coragem necessária para atravessar os dramas e os triunfos que se apresentam. Desta forma, Hemingway resgatou as suas personagens-fétiche: fez confluir no pescador as representações do homem que se integra no mundo através da conquista da vida prática e do esforço em saber estar à altura das situações.

Em pouco mais de cem páginas, o escritor norte-americano atingiu a proeza de mostrar generosamente que a dignidade humana não é derrotável. “O Velho e o Mar” valeu-lhe o Pulitzer de 1952 e, dois anos mais tarde, o Prémio Nobel da Literatura. Hemingway- Santiago-Lula contam coisas novas dos homens.

    
   

 
Ernest Hemingway
 
 
Ernest Hemingway nasceu em Oak Park, Chicago, EUA, em 1898 e morreu em 1961, em Sun Valley, Idaho, EUA. Foi prémio Nobel da Literatura em 1954. “O Velho e o Mar” foi publicado em 1952.