|
|
“Terra Sonâmbula”,
de Mia Couto Relato poético
das memórias e dos sonhos que a guerra civil destruiu
— “Terra Sonâmbula” é o primeiro
romance de Mia Couto
Por Raquel Ribeiro
Muidinga, o miúdo, e Tuahir, o velho,
seguem estrada fora, em busca “de um outro continente
dentro de África”. Como todos os personagens
de “Terra Sonâmbula” (1992), andam à
deriva num Moçambique esventrado pela guerra civil,
banhado em sangue e lágrimas.
Nesta história de uma terra adormecida
ao som dos morteiros, o escritor moçambicano Mia Couto
(Beira, 1955) continua a fazer do conto (antes deste livro,
publicou dois livros de contos, “Vozes Anoitecidas”,
1986, e “Cada Homem É Uma Raça”,
1990) o estilo e marca pessoal de escrita. Daí que
se tenha dito que “Terra Sonâmbula” —
que foi considerado um dos 12 melhores romances africanos
do século XX — é um “grande livro
de contos”.
A oralidade como “desarrumação
da língua”, o ultrapassar dos limites, a re-invenção
e o enriquecimento do “português”, a consagração
do vocábulo — de tudo isso “Terra Sonâmbula”
é feita. “O encontro entre a oralidade e a escrita
é uma das pontes que nos faltam para encontrar neste
mundo o nosso mundo”, disse o escritor numa entrevista
ao PÚBLICO, que amanhã publicamos.
Mia Couto é poeta, escritor, biólogo
e foi jornalista durante os turbulentos anos da independência.
Disse muitas vezes que o jornalismo lhe deu disciplina e que
a biologia lhe mostrou “outras linguagens”. “Todo
o resto devo à poesia”, disse numa entrevista
à “Folha de São Paulo” em 1998.
E é a poesia que Mia Couto explora nesta
“história dentro da história”, em
que a narrativa aparece como a “redenção”
do sofrimento da guerra. Mas em “Terra Sonâmbula”
a “ausência” de poesia é mais flagrante:
nessa África maculada pelo sangue, os homens parecem
lutar contra si mesmos, num desespero da solidão na
imensa paisagem. O que é, então, este livro
no livro, a escrita no abismo?
No meio do nada, Muidinga encontra um livro,
o “caderno de Kindzu”, de um “tempo em que
o mundo tinha a nossa idade”. Da leitura desse livro
surgirá “Terra Sonâmbula” —
duas histórias que se entrelaçam, ambas de testemunho
doloroso sobre a guerra, ambas de memórias perdidas
e de sonhos por conquistar: as memórias de Tuahir,
os sonhos de Muidinga. “O próprio Muidinga está
como se encantando com as palavras de Tuahir. Não é
a estória que o fascina, mas a alma que está
nela”, escreve, no livro. “Terra Sonâmbula”
são estórias com alma, uma terra em divórcio
com os antepassados, a morte com saudades da vida, o som dos
sonhos, “com os ruídos da guerra por trás”.
|