"O Moçambique
de Hoje Não Se Vê"
A guerra civil, um velho e um menino, um
livro com uma história por ler - "Terra Sonâmbula",
de Mia Couto, é o Moçambique adormecido na sonolência
da história, perdido nos horrores de guerra, à
espera de uma paz quas impossível. Mais de dez anos
depois, Mia Couto falou, numa entrevista à distância,
sobre o seu primeiro romance.
Por Raquel Ribeiro
Eleito um dos doze melhores livros africanos
do século XX, dez anos depois "Terra Sonâmbula"
(1992) é hoje publicado na Colecção Mil
Folhas. Ao longo desta entrevista - em tom de balanço
- Mia Couto explica que escreveu "Terra Sonâmbula"
como um "processo de catarse, de afastamento dos fantasmas",
de errância, pensando que a guerra "seria para
sempre". E explica também como se pode "criar
um universo em que os meninos possam encantar os mais velhos".
Estórias de encantar, os sonhos e as memórias
de um país a (re)nascer.
P.: Mais de 10 anos depois, "Terra
Sonâmbula" está incluído numa colecção
de livros (a Colecção Mil Folhas) junto a escritores
contemporâneos como Salman Rushdie, Paul Auster e Somerset
Maugham. O que significa isso, para si?
R.: Um motivo de alegria, sem dúvida.
Mas falar de mim ou do que faço é algo sobre
o que tenho grandes dificuldades. Não se trata de humildade.
É mesmo incapacidade. Tenho com a literatura uma relação
que pretendo manter a um nível de uma certa saúde:
o prazer vem do fazer, do criar a história, de inventar
os personagens. O resto tem a sua importância mas é
marginal. E deve ficar assim, marginal. Conheço autores
que foram devorados por esse resto, essa espécie de
espelho que ergueram à volta do simples acto de criar.
P.: "Terra Sonâmbula" foi
considerado um dos doze melhores livros africanos do século
XX. O que são, para si, os prémios e as distinções?
Qual o significado de ser um dos doze melhores livros africanos,
num continente como África?
R.: Haver um júri constituído
por 15 dos maiores especialistas de África que encontrou
valor num livro meu, isso é evidentemente estimulante.
Sou de um país que só se torna visível
por via do negativo, da desgraça, da guerra. Somos
ainda poucos escrevendo, somos poucos criando uma imagem diversa
de nós mesmos.
Por outro lado, os nossos livros só
se realizam quando se tornam maiores que nós, os autores.
O prémio foi concedido ao livro, não ao autor.
O livro deve estar orgulhoso de si mesmo. E talvez, de quando
em quando, pense que foi criatura criada por mim.
P.: Como vê Moçambique hoje,
depois da guerra? O país continua naquilo a que chamou
"momento de trégua", indeciso entre "o
horror da guerra e o terror da paz"?
R.: Uma das coisas curiosas com o Moçambique
de hoje é que ele não se vê. Não
que se tenha tornado visível. Mas porque há
muitos Moçambiques disputando um mesmo retrato. Há
demasiadas procuras, em simultâneo. Há a procura
de um modelo de Estado que seja funcional e capaz de construir
riqueza e justiça. Há um Estado que partiu à
procura de uma nação cuja maior riqueza é
a sua diversidade, que tem várias nações
e culturas dentro de si. Há um povo que procura um
novo desenho para aquilo que possa ser um futuro. E há
essa procura mais vasta de uma certa modernidade que mais
nos convenha.
P.: E a literatura hoje, em Moçambique?
Está mais dinâmica?
R.: A literatura é, infelizmente, um
dos géneros artísticos que mais se ressente
deste intervalo de esperas. Enquanto as restantes artes vivem
momentos felizes, com novos talentos e novos caminhos, a literatura
parece perdida. Creio que isso tem a ver com o facto de a
literatura estar no centro de todas as procuras a que já
fiz referências. O nascimento de uma literatura é
coincidente com o nascer de um sentimento de nacionalidade,
com o forjar de um mundo que encontra o seu chão na
lógica da escrita.
P.: Que balanço faz de "Terra
Sonâmbula" - em termos pessoais, da sua escrita?
É um livro importante na sua carreira?
R.: Foi um livro escrito durante a guerra e
num momento em que eu acreditava que essa guerra seria para
sempre. Comecei o livro sem nenhuma esperança que os
meus filhos iriam saber, um dia, o que seria a paz. E o curioso
é que eu mantinha a convicção que um
livro sobre a guerra se faz depois da guerra. Actuei contra
essa própria convicção, começando
a escrever a história ainda em plena situação
de guerra. Mas havia no ar alguns sinais, silenciosos e subtis,
de que se estava fabricando a paz. E de facto, pouco tempo
depois de ter publicado o livro, foi rubricado o Acordo de
Paz.
P.: Disse em algumas entrevistas que "sofreu"
ao escrever "Terra Sonâmbula". A escrita é
sofrimento ou prazer?
R.: A escrita é um modo de assumir a
própria condição de estar vivo, de se
ser Vida. Por isso, é prazer e sofrimento. O que me
custou escrever "Terra Sonâmbula" fez arte
do próprio processo de catarse, de afastamento dos
fantasmas que a violência da guerra instalara em mim.
Precisava de percorrer esse caminho, fui esse personagem do
livro que caminhava pela berma do mundo, onde se misturam
as fronteiras do mar e da terra. Os livros devem permitir
isso: que o autor seja autorizado pelos outros personagens
a ser mais um dos personagens.
P.: Em "Terra Sonâmbula",
os sonhos de uma África cheia de poesia são
completamente devastados pela guerra. África e poesia
são palavras que ainda poderão rimar?
R.: Nós criamos diversos mitos sobre
África. Dentro e fora de África, a chamada identidade
africana tem sido sujeita a um processo que olha como essência
algo que é resultado da História e das histórias.
Li em Leopold Senghor algo que ilustra essa essencialização
de uma África especialmente diferente e exótica.
Dizia ele: a emoção é africana e a razão
é helénica. Mais do que todos, os africanos
devem contrariar este retrato mistificado. Infelizmente, alguns
dos afro-centristas tombaram nesta armadilha e procuram reivindicar
uma identidade "africana" no quadro dos mitos que
a Europa criou para o continente. Nem os negros são
especialmente bons nem especialmente maus. África não
é o lugar privilegiado da poesia. O continente africano
não é especialmente corrupto ou particularmente
violento. A corrupção e a violência são
fenómenos humanos e ganham expressão diversa
de acordo com diferentes cenários históricos.
P.: Este é o seu primeiro romance.
Afirmou várias vezes que foi a sua editora "que
disse que este livro era um romance". Continua a vê-lo
como um "grande livro de contos"?
R.: O que quero dizer é que essa classificação
não me ocupa nem preocupa. Quero é contar uma
história. Algumas dessas histórias realizam-se
num quadro de um livro maior. Outras são iluminações
súbitas.
P.: A estrutura narrativa do romance apresenta-se
como uma história dentro da história. Ao longo
de toda a obra, a escrita e as palavras surgem como uma espécie
de ideia fundadora da humanidade. "Renascer", "redescobrir",
"buscar outro continente" são expressões
constantes. As palavras/texto são o que sobra quando
a guerra já levou tudo? A leitura/escrita surge aqui
como "uma salvação"?
R.: Tenho por ideia que o encontro entre a
oralidade e a escrita é uma das pontes que nos falta
para encontrar neste mundo o nosso mundo. Países como
Moçambique - em que a oralidade é ainda uma
lógica dominante - estão deitando pela porta
fora uma possibilidade de encontrar caminhos originais e fazer
valer filosofias centradas num outro olhar. A identidade dos
personagens de "Terra Sonâmbula" desenha-se
nessa linha de fronteira. Mas com algumas inversões:
é o menino que conta histórias ao mais velho,
o que subverte o estereótipo. Afinal, é esse
o desafio: criar um universo em que os meninos possam encantar
os mais velhos, criar caminhos em que a inovação
possa seduzir o património de certezas e heranças
antigas.
P.: "Terra Sonâmbula" é
um livro de memórias ou de sonhos?
R.: Não creio que existam lembranças
que nos cheguem por um outro caminho que não seja o
da sua própria reelaboração. O sonho
é a porta por onde nos chegam as memórias. Esse
delírio não é um artefício literário.
É assim que sucede em nossas vidas.
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