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O segredo das pequenas
histórias
Belo e comovente, “O Deus das Pequenas Coisas”
é a história de três gerações
de uma família de Kerala, Índia. Os gémeos
Estha e Rahel, a sua mãe, avó, tio, prima e
Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. Mas, numa
noite de Junho, os fantasmas regressam à casa da História
Por Raquel Ribeiro
Rahel chega a Ayemenem numa tarde chuvosa de
Junho – as monções começaram. Maio
já vai longe e o cheiro dos frutos maduros também.
A vegetação parece subir enroscada nas paredes
quando Rahel entra em casa, uma casa vazia com “a varanda
da frente deserta”. “O Plymouth azul-celeste com
barbatanas cromadas ainda estava parado lá fora e Baby
Kochamma ainda estava viva lá dentro.”
Rahel regressa a casa, vinda da América,
para uma viagem pelo passado, as memórias que marcaram
para sempre a família que a amou e a desprezou. Para
lembrar a mãe, Ammu, que amava de noite o homem que
os filhos amavam de dia – Velutha, o deus da perda e
das pequenas coisas. E para reencontrar Estha, o irmão
gémeo – “gémeos biovulares; ‘dizigóticos’,
chamavam-lhes os médicos” –, que se refugiou
numa pesada mudez desde que “tudo” aconteceu.
Assim começa “O Deus das Pequenas
Coisas”, primeiro romance da escritora indiana Arundhati
Roy. Licenciada em arquitectura, Roy nasceu em Kerala, Índia,
em 1961. Cedo se dedicou à escrita de guiões
para cinema. “O Deus das Pequenas Coisas”, publicado
em 1997, é o seu primeiro romance e recebeu o Booker
Prize do mesmo ano.
“Este prémio é sobre o
meu passado. Não sei se escreverei outro livro. Estou
à espera que o barulho na minha cabeça pare”,
disse, em várias entrevistas. Mas não anda afastada
da escrita – pelo contrário, aproveita as palavras
e a poesia para de dedicar às lutas pelas causas em
que sempre acreditou e ao activismo político: as mulheres
e o regime de castas da Índia; a polémica da
proliferação nuclear e as tensões com
o Paquistão; a globalização, o marxismo
dissimulado, o 11 de Setembro ou a guerra no Iraque. “Não
estou interessada em espectáculos públicos.
As pessoas podem fazer coisas mais agradáveis do que
isto.”
Mas quem é esse “Deus das Pequenas
Coisas”? “O deus das pequenas coisas é
a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande
e está sempre em controlo. O deus das pequenas coisas
pode ser a forma como as crianças vêem as coisas
ou a vida dos insectos nos livros, os peixes ou as estrelas
– é um não-aceitar do que pensamos ser
as fronteiras dos adultos”, explica Roy.
Numa noite, Ayemenem é invadida pelas
trupes do “kathakali”. Chegaram as noites de Junho
de 1969, 23 anos antes de Rahel regressar. Nessa altura, Sophie
Mol – a prima de Estha e Rahel, “Amada desde o
Princípio” – já estava na Índia.
Vinha de Inglaterra passar uma temporada na casa do pai, Chacko,
irmão de Ammu. E a vida nunca mais seria a mesma.
Chovia. As crianças saíram para
a casa da História, a casa dos fantasmas do outro lado
do rio, o lado de Velutha, o Deus das Pequenas Coisas. Talvez
tudo tenha começado quando Sophie Mol chegou a Ayemenem.
Talvez não.
Talvez os ciúmes dos gémeos,
as diferenças entre os países, o excessivo amor
da avó Mammachi, a matricarca da família, ou
da tia-avó, Baby Kochamma, pela prima “inglesa”,
a opressão sobre Ammu (a “Mulher Divorciada”),
a divisão das castas (os Superiores e os Inferiores)
– talvez tudo isso tenha separado Rahel de Estha, Sophie
Mol de Chacko, Ammu dos filhos, Velutha da mulher que amara.
Talvez sim.
“Tudo começou realmente
na época em que as Leis do Amor foram feitas. As leis
que estipulavam quem devia ser amado, e como. E quanto."
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