O Outono do Patriarca
Filipe Pinto da Silva
Caro Gabriel García Marquez, O Outono do Patriarca foi o livro mais
extraordinário que li até hoje. Perguntarem-me as razões é inútil. Da
mesma forma que se ama sem razões, julgo que este livro é
extraordinário, só e apenas isso. É claro que poderia dissertar sobre a
história mirabulante que é relatada, sobre esse ditador sem nome e sem
idade, sobre o seu poder incomensurável, sobre o insólito que percorre
todas as páginas. Poderia abordar a forma como essa história é contada,
o poema imenso que no fundo é este romance, o debitar contínuo de uma
linguagem única. Poderia fazer isso tudo mas não o farei (ou já o fiz?).
Quero apenas partilhar este sentimento simples de que ao ler O Outono do
Patriarca deparei-me como nunca com a magia da literatura, com o
sentimento de que apenas com a escrita se exorcizam os fantasmas que nos
assombram a todos, pessoal e colectivamente. A liberdade é a explicação
deste livro, mas até ela se revelar em cada leitor como tal, julgo que é
a total ausência dela, a sua total destruição, deturpação, alienação
causada por esse ditador que nos guia atavés desse universo surreal e
totalemente demente de uma sociedade refém da loucura de um homem. As
feridas constantemente dilaceradas nas mentalidades dos povos em estados
totalitários estão genialmente caricaturadas neste romance, desde o
culto do medo e do silêncio, do culto da personalidade do ditador levado
ao extremo, das lavagens cerebrais colectivas, da fabricação e crença
das mentiras. Todo este universo polvilhado de detalhes grotescos.
Caro Gabriel García Marquez, como será escrever um livro assim?
Deixo-lhe esta pergunta. Digo-lhe apenas que ler um livro assim é uma
experiência humana... dignamente humana e como cada vez temos menos
oportunidades para as viver fica aqui o meu sentido e humilde obrigado.
Até sempre naquele sítio mágico onde se escrever e se lê.