Ficções
André Filipe Coutinho de Freitas Domingues
Señor Borges:
Não me esqueço como foi sinistra a sua primeira aparição, supostamente
impresente, a morte de um sol insano a difundir amarelo em todas as
direcções da
cegueira, as pampas e as páginas das enciclopédias crestadas, e as
fogueiras dos gaúchos, entre opúsculos, sempre acesas, Não me esqueço do
espanhol ao fundo da boca embargado, mais irónico que confluente, a espada
nórdica e a flor britânica a brotar na lapela, os dotes mágicos da bengala
propedêutica e era o outro quem nela se apoiava sempre, os espelhos e os
reflexos apócrifos, fragmentos para uma Arte Poética,
Buenos Aires e o crepúsculo do afecto, Quijote, Lugones, Sarmiento,
Casares, Kodama, Alexandria, Babel, Os conjurados e todos os instrumentos
do tempo...
Não me esqueço.
É possível que a memória se confunda com Funes, ou Funes com a memória
dos limites e do desterro, pode ser que o sonho seja apenas um rosto
enterrado no rosto rude de
Martín Fierro, mas não é possível que o silêncio, a erudição e a matéria,
não passem dos estrondos atonais dos pesadelos, ou de abismos que sonham e
somam abismos entre estrelas, ou simplesmente do rasto de uma cáfila a
atravessar as areias ardentes
da cegueira, é impossível que não haja entre
o incêndio do tempo,
partículas momentâneas, miragens inconsumptas e concêntricas
essas mesmas, señor Borges, perigosos e antiquíssimos caracteres,
antepassados comuns do Universo e do Alfabeto.
É impossível, señor Borges, é impossível transcrevê-lo.
Escrevo-lhe por crer no paradoxo do tempo, e no paradoxo do paradoxo
enquanto construção contrária ao contrário de si mesma. Escrevo-lhe, por
ter visto através e além do Aleph, a dimensão
prismática da luz interposta entre si e todos os lugares dos tempos
Escrevo-lhe, porque acordei das súbitas conjecturas, do sono das Ruínas
Circulares, dos olhos dos tigres obscenos, e da memória repleta
Escrevo-lhe, porque sonho com Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, com deidades
concentradas e com o anonimato fantástico do verbo, e porque li livros
líquidos em bibliotecas bióticas, e decifrei
labirintos e pertenci a sociedades secretas,
Escrevo-lhe E já nada mais eu espero.