O Som e a Fúria
Carlos Biscaia
Caro William:
Atrever-me-ia a dizer que se tivesse que escolher um som, não me deteria
demasiado tempo, e a minha preferência recairia sobre o som da fúria. É
o som que se não ouve, como aquele outro que, não se ouvindo, afecta o
sentido que lhe respeita. Recordo hoje, que os aeroportos são lugares de
sons sombrios que se não ouvem. Aqueles que trabalham no frenesim da
viagem aérea, gemem um passado de sons que não ouviram. E estes
trabalhadores, em não ouvir o nefasto som do engenho humano, cuidam que
colossais espíritos passeiam, nas pistas imensas do nosso porto aéreo, o
porto sidéreo. Não deixa de ser estranho que uma abantesma se alheie do
sentido estético e escolha máquinas tão portentosamente toscas para
deixar escorrer nelas, o tom das nuvens que sempre descem para incitar o
mais anónimo dos indivíduos. Porque é precisamente no mais anónimo dos
indivíduos, que se anima a mais lúcida chama da fúria. Falo do homem
que, mais do que não ser conhecido, se não lhe reconhece coisa alguma
que não seja a passeata diária, de fato lutuoso aprumado, e a atitude
altiva de um guarda-livros fastidioso que não sai nunca das ruas que são
suas. E este homem que vai escrevendo e ditando a fúria que só o próprio
ouve, celebra heroicamente o anonimato que lhe concedem os demais.
Parece-lhe portanto bela, aquela fúria incandescente que ele chama de si
para si. Uma fúria que se não ouve, como aquela que goteja de máquinas
impossíveis. Ele próprio o indivíduo que, em não voando, se encontra na
mais elevada torre da realidade. A que ele próprio construiu, e as mil
consciências autónomas que o ouvem. O som da fúria na minha pátria, caro
William, chama-se Desassossego.