O Ano da Morte de Ricardo Reis

Eurídice Marcela de Sousa Cristo

«Outras e outras folhas passam como os dias são passados, jaz o mar,
gemem os ventos em segredo, cada coisa em seu tempo tem seu tempo, assim
bastantes os dias se sucedam(...)»
José Saramago, em "O Ano da Morte de Ricardo Reis"

Carlo Senhor José Saramago

Transcrevi estas palavras para um "diário" meu na altura em que lía o
livro onde elas constam, livro esse de um escritor português, do qual
pouco ou nada sabia na altura.  Foi no dia 7 de Agosto de 1987 e era uma
sexta-feira: tenho isso apontado no "diário" da altura.

A respeito desse magnífico livro escrevi o seguinte, inspirada pela
frase dos escritor que acima consta: "Assim bastantes se sucedam as
palavras, os livros, as odes. Se sucedam
uns aos outros a seu tempo; a seu tempo se sucedam as obras de mestria.
De Ricardo Reis a Pessoa, de Pesoa a Saramago , uns aos outros a seu
tempo.
O Ano da Morte de Ricardo Reis li-o, trôpega, tropeçando nas palavras:
enganando-me bricava Saramago.  Brincando com as palavras também outros
o fizeram. «As rosas amo do Jardim, Lídia», nas odes brinca Ricardo
Reis, desnortenantes, descocertadas as frases como com as palavras
Fernando brinca. Nele, no outro e noutros que não foi mas que foi todos
ele e todos eles, ele. Só, e ao mesmo tempo. Nas odes líricas de Reis,
no falar simples e sem pretensões de Caeiro, nas palavras mecânicas de
Álvaro de Campos, brincou Pessoa: ao faz-de-conta brincamos todos os
dias.  Saramago ressuscitou-o - o Mestre da Mensagem - e deu vida a um
seu heterónimo, mais do que ao próprio poeta.  E porque não? Negar a
existência de Reis é como negar que o poeta viveu, esse, o Pessoa...
..«Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu,
respondo que também não tenho provas nenhumas de que Lisboa tenha alguma
vez existido, ou e que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja»
(Fernando Pessoa).

E então duas personagens aparecem, cada qual com a sua vida. Minto: um
já sem a sua vida mas com a sua morte.  Só vive um daqueles que ele, o
Pessoa, era.  Há, portanto, ainda algo que o liga ao mundo dos vivos; um
elo que é parte dele próprio e que só morre completamente quando Ricardo
Reis decide partir com ele, o Pessoa.

Um argumento sem dúvida original, uma história imprevisível.  Por altura
das vésperas da 2ª Guerra Mundial, por altura da 2ª República Espanhola,
da vitória da "izquierda" e do Gobierno de Azaña. Aí por volta de 1936,
na vizinha Espanha "desordem, exaltación, conspiraciones, violencias,
asasinatos".  Por altura da Guerra Civil e "del Gobierno" de Franco.  Lá
fora, Addis Abbeba arde em chamas; reforça-se a Juventude Hitleriana e
os jovens, que disseram "Nós não somos nada" e "Pátria, Deus e Família"
eternecem os mais velhos e levam-nos à exaltação e as nações tremem pela
força e pelo poder daquelas palavras desses jovens decididos!  A ironia
ultrapassa-se a si própria. Habilmente Saramago a utiliza, dela
faz "espada de combate", como também o faz à poesia em prosa, através de
uma consciência de Reis - que se sabe ter tendências monárquicas e,
portanto, contrárias às Revoltas de "Los Rojos", atenuadas, é certo, por
Daniel, irmão de Lídia, através dela própria.
Depois há aquele mar de pobres que o país carrega.  E há esses "pai" que
soube conduzir a nação para escapar aos horrores da guerra, e que é
amado por todos os portugueses que se prezem e que amem a sua pátria e
admirado pelo Estrangeiro e apontado como exemplo.  Esse Mar de pobres
que o país e o "pai"  Salazar se esforçam por manter e por manter também
as bodas, as esmolas por alturas festivas para se não dizer que o Estado
maltrata os seus pobres!
Brincando vai Saramago desnudar as palavras mas envolve-as num fio de
tal maneira emaranhado que quase se perde o nexo.  Mas elas falam só por
si, sem a pontuação que sem se requer em exercícios literários. As
vírgulas e os pontos de final, apenas. Cada frase é um parágrafo e cada
um, por vezes é mais longo que uma página: diálogos, monólogos,
narrativas, descrições, dissertações.
Li-o quase sem fôlego, embriagada, quase em êxtase.  E dei "Vivas" à
língua portuguesa, de Camões, de Camões e minha, que por minha a tenho.
E um orgulho literário se me apoderou de mim e me tomou por completo. Em
delírio inebriante.  E senti o quanto somos grandes nas prosas e nelas
achamos um vaidoso gosto de vitória e de poder. E cremos que podemos
podemos tudo: só pela beleza das palavras e pela língua que partilhamos
- Português, o seu nome.  A nossa arma, mais invencível que outrora a
armada inglesa!" Este texto escrevi-o há quase 20 anos atrás, pela
primeira vez que tomei
contacto com esse escritor português que, desde logo, o considerei
sublime: um mestre.  O Senhor José Saramago.

Depois disso li "O Memorial do Convento " que me cativou desde logo
pelas primeiras palavras que falava de um Rei que ía ao quarto da
rainha, pela "enésima" vez, para ver se ela  engravidava e lhe dava um
sucessor.  Peço-lhe que me desculpe por não transcrever essas palavras
do seu livro, que são magníficas, mas não as recordo exactamente e, de
momento, não tenho o livro perto de mim.
Li o Evangelho segundo Jesus Cristo e deliciei-me com o diálogo entre
Deus e o Diabo, numa barca, no mar.
Li A Jangada de Pedra, considerando genial a ideia da Península Ibérica
separar-se do resto da Europa e andar à deriva.  Li Levantado do Chão
mas já foi há bastante tempo (logo a seguir aos 2 primeiros, há cerca de
15 anos) e para ser franca, já não o recordo.  Li Todos os Nomes, que
adorei, pela originalidade da história, pela
simplicidade do personagem principal, pela sua vida pacata e depois pela
sua obsessão.  Terei talvez lido outros que agora não me lembro.  Na
mesa de cabeceira está o Ensaio sobre a Cegueira para iniciar e, a
seguir, "O Homem Duplicado", que sei que vou adorar.

Senhor José Saramago, vou acreditar que irá ler estas minhas palavras
sobre a sua obra (aquela que eu conheço) e não posso perder a
oportunidade de dizer: Obrigada por existir e por existir como escritor.
Porque os seus livros e a sua forma de escrever contribuiram para
momentos muito felizes da minha vida e para me enriquecer como pessoa.
Para além de me proporcionarem ainda mais o orgulho de falar e escrever
português.

E dizer apenas mais uma coisa: O Prémio Nobel que lhe atribuíram foi por
demais merecido mas para mim o Senhor Saramago, já era Nobel há muito
tempo.  Desde o tempo em que li o Ano da Morte de Ricardo Reis.
Um bem haja e votos para que continue a escrever e a deliciar-me com os
seus livros.

Com muita consideração