O Problema das Estantes

Por José Manuel Fernandes

16.07.2003 - Os mortais comuns, aqueles que não possuem a hiperactividade de Marcelo Rebelo de Sousa, precisam de dormir à noite e são incapazes de ler em diagonal, dificilmente devoram um livro por semana – o ritmo a que a colecção “Mil Folhas” tem vindo a sair –, sobretudo quando alguns têm quase 600 páginas, como “Crime e Castigo” (o nº 55), uma das obras-primas de Dostoiévski. Bem sei que as férias estão aí e das melhores coisas que há é associar a leitura de um grande livro a um local onde passamos tardes descansadas e reconfortantes.

Mesmo assim, reconheço, acompanhar o ritmo de edição desta colecção – e já lá vão quatro milhões de exemplares vendidos… – pode fazer esmorecer a energia do leitor. Ou até do coleccionador. Até porque aqueles livros que estamos a comprar agora para ler mais tarde, ou para os nossos filhos, ou pais, ou primos, começam a sobrar da prateleira. Já não há estante que resista e até aqui no escritório já tive de acrescentar prateleiras para ter todos os volumes à mão.

Pior: quando os livros começam a sobrar da estante para a pilha na mesinha de cabeceira, no canto da sala ou, sei lá, para a caixa que ainda está na bagageira do automóvel, ao problema do tempo que ainda não se teve para ler as obras que pusemos em primeiro lugar na lista de prioridades, soma-se a desavença conjugal. E até pode surgir o ultimato: “Nem mais um só ‘Mil Folhas’ lá para casa.”

O que, naturalmente, coloca um problema: é que não é só mais um, são mais 30. E logo 30 que são tão bons ou melhores do que os primeiros 60.

Senão reparem: há, a abrir a nova série, Arundhati Roy com o seu “O Deus das Pequenas Coisas” e, logo a seguir, Mia Couto e “Terra Sonâmbula”, dois livros contemporâneos, dos anos 90, ambos premiados, ambos de uma profunda humanidade. E logo depois chega o delicioso “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway, seguido por “A Lista de Schindler” de Thomas Keneally, seguido por, e por, e por… Quem é capaz de resistir?

Eu não, mas não é preciso ter o vício do livro e da leitura (talvez o melhor dos vícios…) para continuar o que se começou: a Colecção Mil Folhas. E, em consequência, tratar do problema da estante. Ou das estantes.

É certo que ainda não chegou cá o “Ikea” e que uma deslocação a Madrid aos armazéns de mobiliário nórdico pode não ser a solução mais à mão, mas desde a mais primitiva das construções – umas tábuas sobre uns tijolos, tal como a minha primeira estante – até à hipótese de ir escondendo a biblioteca dos olhares inquisitivos do cônjuge no fundo de um armário ou até debaixo da cama, tudo pode servir para, bem à portuguesa, “empurrar o problema com a barriga” até que se encontre a estante ideal para o lugar de destaque que uma biblioteca com Graham Greene, Karen Blixen, Salman Rushdie, Nadine Gordimer, John Le Carré, Natália Correia ou Robert Musil merece.

E depois… bem, depois há-de chegar a solução, os metros que faltam hão-de aparecer e até pode ser que um dia, como em casa de Vasco Graça Moura, as prateleiras se estendam por 500 metros, meio quilómetro de livros. É que os livros são contagiosos e como as cerejas: atrás de um vem sempre outro. Quanto à estante, lá se chegará.