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Uma saga entre pishtacos, senderistas e pedregulhos

No meio da noite e dos Andes peruanos, dois homens, dois guardas civis, Lituma e Tomás, procuram três desaparecidos. Dizem-lhes que foram os demónios vivos. Eles não acreditam. Mas de algum modo é verdade.

Por Fernando Sousa

Quando se fala da obra de Mario Vargas Llosa, raramente, ou nunca, se refere “Lituma nos Andes”. E, no entanto, a novela faz parte, com “Conversa na Catedral” ou “A Cidade e os Cães”, ou “Panteleão e as Visitadoras”, dos escritos em que o Peru domina, com todas as suas contradições.

A história do cabo Lituma e do seu ajudante Tomás Carreño, exilados num pequeno posto da Guarda Civil em Naccos, algures nos Andes, longe de Lima e do mundo, no meio de senderistas, sanguinários, e de serruchos, mais leais aos deuses das montanhas do que aos homens, tem tudo para prender, página a página. Pela densidade e o tropel de acontecimentos, a mestria dos diálogos cruzados. É urgente tirar o Prémio Planeta 1993 da prateleira.

Os dois homens investigam o desaparecimento de três pessoas e não podem contar com ninguém na aldeia mineira de Naccos. O assunto é tabu. Entram na cantina de Adriana, a velha bruxa, e de Dionísio, e faz-se silêncio. De nenhuma boca sairá o que quer que seja sobre Pedrito Tinoco, Casimiro Huancaya e Demetrio Chanca. Um dia diluíram-se na bruma. Ou, pior do que isso, um pishtaco, um demónio vivo, secou-os, esquartejou-os e fê-los banha de candeia ou óleo de máquina. Mas como saber o que aconteceu se o assunto assusta e cala as bocas e os terrucas espreitam atrás de cada morro?

O momento em que tudo se passa pode ser um ano qualquer anterior ao da edição do livro. Alberto Fujimori venceu as eleições de 1990 contra nem mais nem menos que Mario Vargas Llosa, que assim ficou com mais tempo para escrever sobre a tragédia do país. O Peru caminha de pés nus sobre brasas. O Sendero Luminoso aterroriza departamentos, províncias inteiras. Nasceu em 1980 para fazer a revolução popular e vai pondo bandeirinhas vermelhas em todas as colinas ou cabeços da sua caminhada para Lima. Vai marcando o caminho, as picadas, e que nem ninguém se lhe atravesse. Agora anda próximo de Tíngo Maria, e portanto de Naccos. E portanto nas barbas dos dois guardas civis. É este o ambiente.

O diálogo entre Lituma e Tomasito, de catre para catre, noite fora, dentro da cabanaposto, afastada do povoado, isolada, à volta da qual todos os ruídos são ameaçadores e todos os silêncios de arrepiar, percorre o livro como uma lufada de ar fresco, de humanidade. É o contraponto das investigações, que se arrastam, no meio de cenas de violência quase sem palavras para as descrever, terrucas de poncho e chullo enfiado na cabeça a matarem à pedrada um casal de jovens franceses em lua-de-mel, Albert e “petite” Michèle, numa estrada de Andahuaylas, o sineiro de Andamarca ou a engenheira agrícola senhora Harcourt entre Huancayo e Huancavelica, e outras.

Muitas palavras no Peru começam por “huanca”. É que ali, antes dos incas, moraram dois povos, os huancas e os chancas, tendo os huancas, derrotados e assimilados, ficado conhecidos por um grau de violência incrível. Sempre que era preciso qualquer coisa da natureza, por exemplo rasgar uma estrada às entranhas da serra, ou pedir aos apus, os deuses dos lares e das montanhas, que contivessem os huaycos, desprendimentos colossais de pedra, terra e lama que tudo levam à frente e tudo esmagam, lá ia um sacrifício, em regra humano.

E foi isso que Lituma e Tomasito descobriram, depois de uma conversa inspiradora com um antropólogo dinamarquês, Paul Stirmsson, apaixonado pelos rituais dos povos do tempo em que aquela terra se chamava Tehauantisuyo, que encontraram por acaso a duas horas de caminho. Que um dia, por causa da estrada que queriam rasgar na serra, para servir a mina de Naccos, mas que não conseguiam, e para afastar os terrucos, que espreitavam, os nativos, submetidos pela crendice, a superstição, deram cabo de Pedrito, o mudo, Casimiro e Demetrio.

Pelo meio há histórias imperdíveis. Como a do pishtaco Salcedo, que um dia desapareceu, mas esse para ir morar para uma gruta, transformála numa fábrica de banha de gente e aterrorizar os Andes.

Em “Lituma nos Andes”, muito para além da política e dos mecanismos do poder, do militarismo ou da corrupção, Mario Vargas Llosa desce aos abismos do atraso, da incultura, da miséria, da superstição, quase na barbárie, os demónios que subjazem a um país com um pé na modernidade e outro no terceiromundismo.

Na perspectiva do leitor, a novela permite viajar sem ponta de cansaço no universo novelístico, político, moral, religioso – num sentido amplo – e histórico do escritor, para chegar a um ponto onde a literatura já não é mero entretenimento; porque já criticou o totalitarismo, a perversão moral, o obscuro labirinto das relações humanas, já perturbou, já sugeriu, já fez pensar. Já transformou um momento de leitura noutro de paixão literária.